Katekyo Hitman Reborn | A jornada do bom em nada (Opinião)

Reflexões sobre um incrível mangá.

 

Katekyo Hitman Reborn acabou com um final em aberto no capítulo 409. Ficou subentendido que as aventuras continuariam, que muita coisa aconteceria e que aquele, definitivamente não era o fim.  E isso irritou a muitos.  O mais triste é que logo depois do anúncio da publicação do mangá pela Panini em 2013, não faltou gente para desestimular as pessoas a comprarem a edição nacional de KHR, já incutindo nas mentes de potenciais novos leitores a noção de que Reborn não prestava, de que o mangá não merecia ser comprado ou sequer conhecido. Pior! A ideia de que ele nunca deveria ter sido publicado! Será que existe algo de errado comigo e com todos os fãs que seguiram fieis à obra até o fim? Será que somos loucos por realmente termos gostado dessa estória e ter visto nela elementos tão fantásticos? Honestamente, eu acho que não. Reborn pode não ter revolucionado a Jump, mas ele foi uma estória interessante e prazerosa de se ler. Sinto falta da ansiedade semanal por um novo capítulo e de teorizar o que aconteceria a seguir (quebrei a cara em 98% das vezes, mas isso só prova o quanto esse mangá era surpreendente). Eu sou perdidamente apaixonada por Katekyo Hitman Reborn. Ele é e será por muito tempo meu mangá favorito apesar de eu acompanhar uma quantidade razoável de títulos que podem ser considerados melhores. Mas KHR não estava tentando ser um Hunter x Hunter ou um One Piece; ele não estava tentando ser o melhor e mais inovador dos mangás. Sua proposta era entreter e cativar, o que não o impediu de levar os fãs a pensarem a obra em grande escala e a encontrar significados ocultos que talvez sequer existissem. A genialidade de Akira Amano reside na sutileza, nos simbolismos e na expressividade de seus desenhos. Tal qual Reborn, este texto também não tem grandes pretensões. Apenas pensamentos de uma fã que podem ou não fazer sentido.

A Máfia domina o mundo de Reborn. Ela age a partir das sombras sem nenhum obstáculo. Governo e polícia não interferem em seus negócios e quando o mundo está sob ameaça, é a Máfia que deve salvá-lo. Não há luta de poderes se não entre facções da organização, e a mesma tem leis, guardiões e cárceres próprios. Sem mencionar o fato de que foi a Máfia o grupo que recebeu os artefatos relacionados ao equilíbrio da vida no planeta e detém praticamente o monopólio e conhecimento do maior poder pertencente aos humanos: as chamas. O mundo está sob o completo controle de pessoas tidas como foras da lei, não existe qualquer menção de haver uma resistência ao poder dos mafiosos e a maior parte da população vive desconhecendo a verdade. Isso me leva a questionar se, no mangá, os governos e seus órgãos não passam de estruturas ficcionais criadas ou manipuladas para ocultar o poder da Máfia e dar à população uma ilusão de segurança e ordem.

Nada disso é dito explicitamente na série, mas é uma interpretação possível. E isso me recorda de uma coisa que li em uma entrevista da autora uma vez: que o que ela achava fascinante na Máfia era o fato de ela ser dúbia. Ainda que criminosos, os mafiosos eram tratados como heróis pelas pessoas que protegiam. Eles atuavam seguindo seu próprio código de honra, tinham sua própria moral e princípios que divergiam e convergiam em diferentes pontos com a moral largamente difundida na sociedade. De fato, a Máfia sempre surge em um contexto social onde a população não pode contar com as instituições e, por isso, um poder paralelo assume funções que seriam do Estado. Foi assim que a Vongola surgiu. Giotto fundou um grupo de vigilantes que visava proteger as pessoas, mas com o tempo (provavelmente a partir do Vongola Secondo) o grupo foi adquirindo feições violentas, obteve muito poder e seu propósito original foi sendo esquecido. Sim, a Máfia é dúbia, tem suas próprias leis e pode ser relativamente bem intencionada, mas ainda é uma organização cruel. E é por ter conhecimento dessa crueldade que, no capítulo 158, Tsuna recusa esse poder.

Ainda neste mundo temos tecnologia de ponta, viagens no tempo, um multiverso, uma super-raça moldando a vida na Terra desde seus primórdios e misticismo; e tudo construído de maneira inovadora, criativa e interessante, havendo intercalações entre diversas fases da estória. Que alegria quando um elemento do começo de KHR era reaproveitado e ganhava maior importância no roteiro, como a bazuca de Lambo ou o Irie (que apareceu pela primeira vez no capítulo 13 do mangá). E é claro que não poderia deixar de ser citada a shinuki no dan original usada contra o último inimigo (que devia ter sido o Checkerface) e o tio Kawahira aparecendo como deus “alienígena do passado”. Houve frustrações, contudo. Nunca soubemos qual era a chama do carinha que atacou o Yamamoto, a origem da Cervello e dos Hell rings (e eu sou muito frustrada com isso), o passado do Bemuda, qualquer coisa sobre o Hibari, etc. Teremos que nos contentar com headcannons até sair um databook ou novas novels. Não posso evitar a sensação de que Amano teria feito um final mais redondinho se tivesse tido mais tempo.

Quanto ao final corrido, não há como se ter certeza sobre o que aconteceu. Particularmente não acredito na hipótese do cancelamento; Reborn podia não estar mais em sua fase áurea, mas ainda era um dos títulos principais da Jump e vendia muitos produtos. Sou mais inclinada a pensar que a autora pediu para acelerar o fim da série por causa de seu trabalho em Psycho-Pass. Notava-se que os desenhos dela haviam ficado menos detalhados pouco tempo depois do anúncio de que ela havia sido convidada para trabalhar no projeto. Apesar disso, eu gostei de a Amano ter decidido terminar o mangá com capítulos de Normal Days e fazendo os paralelos com o início da estória. Os desenvolvimentos foram sutis, mas estavam ali. Pode não ter havido confissão, mas Kyoko definitivamente viu o Tsuna com algo mais do que admiração no penúltimo capítulo. E o protagonista mais uma vez recusou o título de Vongola Décimo. Tsunayoshi nesse ponto da estória tem muito poder e não tem razões para sentir medo de lutar; se algum perigo surgir, ele irá lutar, uma vez que ele não quer abrir mão do anel e deseja continuar a proteger as pessoas importantes para ele. No entanto Tsuna não abandonou suas convicções. Ele não quer ser o Décimo Chefe da Vongola; ele não deseja trilhar o caminho banhado de sangue da organização. O título de Neo Vongola Primo não foi mencionado só como uma brincadeira e um indicativo de que Tsuna nunca poderia fugir da Máfia. Aquilo era um simbolismo de que, ao se ater a seus princípios apesar de todo o poder que adquiriu, Tsuna não assumiria a Vongola enquanto grande família mafiosa (talvez inclusive a destruísse), mas atuaria como um vigilante junto com seus amigos, defendendo as pessoas e resgatando o propósito original de Primo. Sawada cresceu e amadureceu, mas não mudou em aspectos cruciais. E isso, segundo Reborn, era ótimo.

KHR foi um mangá criativo, louco, divertido, fez uma transição brusca para a seriedade e ficou muito bom, foi dramático, cheio de suspense, reviravoltas, fortes emoções, romance, recomeços, crescimento pessoal e amizade.  Não era uma estória sobre heróis que queriam conquistar seus sonhos e viajar pelo mundo, mas sobre um rapaz absolutamente normal que queria ter dias calmos e divertidos com sua família (que havia ficado enorme) e, para tê-los, precisava continuamente lutar. As sobrancelhas contraídas indicavam a todos que ele não lutava porque gostava, mas porque era necessário. Por mais que isso frustre a muitos, Tsuna nunca desejou viver aqueles perigos apesar de ser grato pelas pessoas que conheceu graças a eles. Seu sonho não era ser um líder de uma grande organização criminosa, mas sempre proteger e retornar aos dias felizes e pacíficos.

Reborn foi o primeiro a acreditar no potencial de Tsuna e a dizer que ele podia conquistar qualquer coisa se superasse seus limites internos. O rapaz tinha ouvido durante a vida inteira que era um bom em nada (inclusive de sua mãe) e acabou por internalizar isso, o que é algo muito triste. O jovem era solitário e vivia sem perspectivas até conhecer o hitman e ganhar uma vida arriscada e, ainda assim, divertida. Reborn desrespeitava Tsuna enormemente no começo da estória e se mostrava uma pessoa fechada, mas gradualmente se afeiçoou ao rapaz, reconheceu sua força e potencial e criou um laço parental com o Sawada (e Reborn foi uma figura paterna muito mais importante do que Iemitsu, atrevo-me a dizer).

Gokudera e Yamamoto podem ter ficado apagados na última saga, mas eles reiteraram que eram parte da família de Tsuna. Yamamoto viu no pequeno rapaz alguém em quem podia confiar e seguir, e temos que levar em conta que foi graças ao bom em nada que o jogador de beisebol não cometeu suicídio e aprendeu a valorizar mais as pessoas com quem se importava do que o esporte e seus desejos egoístas. Ele com certeza entendia que aquilo não era um jogo e se mostrava sério quando precisava; talvez Yamamoto agisse como um bobo às vezes simplesmente para tentar tornar a atmosfera mais leve e fazer com que ninguém perdesse a capacidade de sorrir, apesar de todas as dificuldades que enfrentavam.

Hayato, por sua vez, ficou traumatizado ao saber da verdade sobre sua mãe (embora não fosse ainda a verdade completa) e fugiu de casa ainda jovem, tentando encontrar uma família que o aceitasse e um propósito para sua vida. Primeiramente ele tratava Tsuna exclusivamente como seu chefe, dando-lhe o máximo respeito possível. O guardião da tempestade talvez fizesse isso por temer ser rejeitado pela única pessoa em quem conseguia confiar. Com o tempo (e inúmeros sermões), Hayato vai aprendendo que não é visto por Tsuna como um subordinado, mas como um amigo, e que ele é amado e estimado por muitas pessoas; ele também aprende a confiar, respeitar e se relacionar com os demais. Gokudera até se preocupou com Yamamoto quando ele foi atacado na saga Shimon e reconheceu que Tsuna não era uma pessoa perfeita – e que o mais importante nele não eram suas falhas-, o que seria impensável no início do mangá.

Chrome evoluiu muito na saga final. A garota frágil que foi abandonada à beira da morte por uma família que jamais lhe dera amor encontrou uma razão para viver ao conhecer Mukuro. No começo ela era muito dependente dele, mas desejava mudar e ficar forte.  Depois de conhecer a Vongola, seu mundo se expandiu. Ela já não existia somente para Mukuro e a gangue; havia mais pessoas que se importavam com ela e a valorizavam. Gradualmente, Chrome cresceu e por livre vontade se tornou independente. Ela ainda amava Mukuro, mas possuía uma identidade própria e tinha mais entes queridos e coisas para proteger. No final ela se desliga da gangue de Kokuyo (embora não tenha cortado relações com eles) e se integra mais efetivamente à família de Tsuna. Em sua última cena, nós a vemos sorrindo em meio aos amigos, vestindo roupas normais, pronta a dar o apoio necessário a todos.

Ainda havia o enigmático Hibari, o extremista Ryohei (no fundo, um sujeito sensível e super protetor), o divertido e fofo Lambo (sem contar com sua versão adolescente cabeça fria e sua versão adulta badass), a doce e forte I-Pin, a corajosa e sábia Uni, o egomaníaco e mentalmente instável (que depois foi salvo do desespero) Byakuran, o dúbio Mukuro, o raivoso Xanxus, o barulhento Squalo, o aterrorizante Bermuda, o melancólico (e depois alegre) Enma e tantos outros. Muitos personagens mereciam ter sido melhor trabalhados e havia muitas estórias a serem contadas. Tsuna e os demais ainda tinham muito por crescer e ainda havia muito por que se lutar (como a extinção da Vongola, por exemplo) e a descobrir. Mas um final em aberto tem a vantagem de permitir aos fãs imaginar e explorar inúmeras possibilidades. Os personagens estão vivos, a estória está apenas começando. A jornada de Sawada Tsunayoshi e do tutor hitman reuniu muitas pessoas, as quais jamais os esquecerão; e essa jornada não se extinguirá enquanto houver gente que saiba apreciar esse mangá tão único. Como um anjo sem asas, Reborn apareceu de repente para Tsuna, alterando seu destino para sempre. Deve haver um universo onde o rapaz se torne o Décimo, outro onde ele vive pacatamente, um em que ele se casa com Kyoko, outro em que ele se apaixona por Haru ou uma pessoa diferente, um no qual ele nunca conhece Reborn ou faz amigos (the darkest timeline?) e outro onde ele é sedento por poder e cruel. Talvez o mangá tivesse feito mais sucesso se tivesse trilhado um caminho distinto, mas eu não trocaria o universo original por nada. Ainda que com furos de roteiro, personagens mal-aproveitados, final corrido e um herói atípico, Katekyo Hitman Reborn me marcou profundamente e me proporcionou momentos maravilhosos. E tenho certeza de que não fui a única. Reborn, grazie di tutto. Ciao!

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