A minha jornada por alguns títulos da linha atual de mangás da JBC continua. Para quem está chegando agora, já comentei por aqui sobre Bullet Armors, Orange e To Love-Ru. E agora finalmente consigo voltar para falar de mais um dos mangás em publicação atualmente: Gangsta., um mangá adulto, crime e ação, envolvendo um trio peculiar de protagonistas: um gigolô, um ex-soldado e uma prostituta.
Não foi fácil começar a escrever sobre Gangsta., pois tive alguns problemas sobre como deveria começar essa resenha. E não porque o mangá é ruim, foi justamente o contrário: a qualidade de Gangsta. é absurdamente impressionante!
É chato as vezes soar como um disco riscado quando estou comentando sobre um mangá que me agradou, porque também coloquei esse tom de satisfação quando abordei Orange e Bullet Armors, mas o que posso fazer se Gangsta. também foi outra surpresa pra mim? Prova de que estou ficando velho e que está cada vez mais difícil acompanhar tudo que é bom e que está em publicação no Brasil. Decididamente eu preciso ficar mais atento a enorme pilha de mangás em circulação e que estão fora daquele circuito dos blockbusters da Jump. É complicado conhecer e acompanhar de tudo hoje em dia.
Você pode até justificar que sou meio lerdo de não conhecer Gangsta. sendo que justamente em julho de 2015 o título chegou a ganhar uma versão em animê e que hoje, ao pesquisar sobre, vi que muita gente elogio e gostou. Mas para ser justo, o título não foi licenciado no Brasil pela Crunchyroll (o que é uma tremenda sacanagem) e meus dias de ter saco para ficar baixando animês de sites de fansubs-que-não-sabem-o-que-são-torrents estão aposentados.
A vida em Ergastulum
Enfim, voltando a Gangsta. (sim, existe mesmo o ponto ao final do nome do título), o primeiro volume apresenta esse mundo peculiar onde tudo parece ser muito ruim. Há crimes acontecendo a torto e reto, a polícia é corrupta, a prostituição e a máfia são como uma infestação que tomam conta dessa cidade chamada Ergastulum.
Em meio a esse caos urbano o mangá apresentam seus protagonistas principais: Worick Arcangelo e Nicolas Brown. Ambos são uma espécie de “faz-tudo” nesse universo, funcionando como mercenários, mas não tão ruins quanto isso possa soar, executando certos serviços para aqueles que pagarem pela prestação do trabalho. Até mesmo a polícia paga por alguns dos serviços da dupla, e tolera que eles assassinem seus alvos. Só para dar a noção do mundo do mangá.
O primeiro volume ainda não trabalha com todos os detalhes do passado destes personagens, deixando apenas algumas indicações e pistas, que nem quero falar muito aqui para não entregar certos spoilers. Basta saber que ambos se conhecem desde muito jovens e que ambos carregam certas cicatrizes ruins por esse passado e destinos cruzados.
A terceira protagonista é Alex Benedetto, uma prostituta que Nick e Worick conhecem na missão que abre o mangá. Eles acabam acolhendo a garota que segue durante todo o volume e primeiros capítulos como os olhos e ouvidos do leitor novato, chegando agora a esse mundo. Alex não conhece direito esse mundo de Ergastulum ou Worick & Nick e então muita das coisas que precisam ser contextualizadas ao leitor é feito sobre a percepção dela, com Alex aprendendo as regras desse mundo após se juntar a dupla de faz-tudo.
Linguagem de sinais
Um dos grandes diferencias de Gangsta. é ter criado um personagem surdo, que passa a maior parte do tempo conversando pela linguagem de sinais.
Transpor esse tipo de característica em um personagem não deve ser fácil, imagino. E o personagem que estou me referindo é o Nicolas, que mesmo podendo falar, nem sempre fala.
E há um toque nos detalhes dos balões que faz toda a diferença na imersão da proposta de um personagem com essa deficiência. Quando Nick fala, o balão tem um estilo visual próprio, como se o leitor entendesse que apesar de Nick falar, as palavras e o tom da voz saem errado, tal qual uma pessoa surda tem essa dificuldade. E quando ele não fala, está gesticulando, então o balão que dá “voz” aos seus gestos são pretos com letras brancas. É realmente muito crível a forma como a autora trabalha com essa limitação de um personagem. Imagino como deve ser difícil criar um personagem na qual suas expressões e emoções precisa ser feitas muito mais por linguagem corporal do que facial!
É uma proposta diferente que ressalta a atenção do leitor. Deixando-o mais atento aos gestos do personagem. Prestando mais atenção aos sinais, aos movimentos, fora as regras que esse tipo de situação impõem, como quando há uma cena de luta onde o problema de audição do Nick fica evidente e isso cria uma desvantagem a ele. Há todo um lance original ao trabalhar com um personagem assim, mas que tem todo um carisma ao conquistar o leitor do mangá.
Um traço que conquista o leitor
O traço da autora é também admirável. Por se tratar de um mangá adulto, o traço é firme e sério. Tem um tom sóbrio, chega a lembrar um pouco o estilo ocidental de fazer quadrinhos, mesmo em que haja momentos em que o leitor claramente identifica elementos da fórmula de um mangá, como os momentos de humor onde os olhos e feições dos personagem mudam, dando aquele tom engraçado do gênero de quadrinhos oriental. É um misto interessante de influências, que não se limitam unicamente aos clichês do gênero do mangá.
O próprio layout de página é mais vertical do que os mangás mais tradicionais, isso porque a autora trabalha com desenhos grandes e belos close up nos personagens. Lembra um pouco aqueles tempos de ouro do Tite Kubo com Bleach, na qual os personagens nunca pareceram crianças, com todos com aquele ar de serem altos e “velhos”. A linha visual de Gangsta. segue muito dessa sensação.
Violência? Há de sobra nesse primeiro volume. Não poderia ser diferente tendo como estrutura um mangá de criminalidade, de uma sociedade corrompida por adultos errados. O legal é que Worick e Nicolas não são adolescentes perdidos nesse mundo, mas adultos mesmo, fazendo o que precisarem fazer para continuarem vivos. A violência é justificada e não necessariamente gratuita ou expressivamente ofensiva e errada. Ela casa aos elementos e proposta da história, deixando-a existir de forma necessária e até mesmo justa. Mérito de um traço e roteiro muito bem planejado. Ao menos nesse volume inicial.
Um elenco cheio de carisma
Worick, parceiro de Nick, além de faz-tudo, também mantém o emprego de gigolô, mesmo com seu tapa olho meio Nick Fury (Marvel) ele é muito popular com as mulheres, tendo toda aquela pinta de galã. E apesar dele também lutar e se sair bem com armas de fogo. Worick é o cara espirituoso, cheio de gracinhas e que sempre parece ser o amigável, ainda que também possua problemas e cicatrizes de um passado traumático. Na hora em que a coisa pega, ela também mata os alvos sem dó algum. Não é um personagem que o leitor deve deixar se levar apenas pela aparência do cara maneiro. Ele é tão perigoso quanto Nicolas.
Entretanto Nicolas é o cara da briga, já que é um ex-soldado (ou meio que algo assim, você precisa ler para entender o conceito das dogtags que o universo da série criou). É ele quem parte para matar e assassinar alvos no primeiro volume, tendo como sua arma principal uma espada tipo samurai. O que meio que casa com a ideia de um mangá. Precisa ter alguém de espada, mesmo que toda a ambientação preze por esse clima de máfia e armas de fogo, sempre tem espaço para um elemento puxado da cultura japonesa e dos mangás.
A dupla de protagonistas então faz contra pontos entre si, mas são personagens cativantes, com aqueles tons de cinza, na qual o leitor não poderia categorizá-los somente como heróis da justiça. Há mais para se aprender sobre eles e esse mundo do mangá do que apenas se vê superficialmente. Eles não são são vilões entretanto, já que agem em detrimento dos injustiçados algumas vezes. É preciso ponderar como enquadrá-los, mas me parece cedo para isso.
Alex é o elemento novo, que chega para mexer com os personagens e com o leitor. Funciona como o elemento de apresentação do começo dessa história e mundo criado. No começo, ao ser acolhida pela dupla, após ter passados por maus tratos de alguns capangas que a aprisionavam, ela estranha bastante a dupla, afinal quem são estes caras que chegaram do nada, mataram todo mundo do local em que ela vivia e só deixou ela viva? São mercenários e o que diabos eles querem com ela? Eles matam, mas geralmente matam pessoas ruins. Não ficam zoando ou maltratando pessoas que não lhe fazem mal ou que o mangá apresentam como sendo “do bem”, ainda que o conceito de certo ou errado em Gangsta. não seja preto e branco. Alex passa todo o primeiro volume lidando com estas questões. Ela é o olho do leitor, então há ainda essa dúvida. Eu como leitor gosto destes caras? Ou ainda preciso descobrir mais sobre eles? Acho interessante que a perspectiva da Alex imite a visão do leitor, e é melhor que conforme a leitura avança, ela fica mais suscetível a aceitar as coisas como são e o leitor vai junto nessa aceitação.
Mais adulto é bom!
Eu fiquei realmente empolgado com esse primeiro volume, introduzindo este mundo e estes personagens complexos e densos. É bem diferente de outros mangás que são mais populares por terem como um público alvo leitores mais jovens. Há um ótimo momento mais ao final do primeiro volume onde Nick parte pra cima de um bandidão que todo mundo julgava ser peso pesado que é de tirar o fôlego!
Por estar dentro de uma faixa etária diferente isso cria clichês diferentes. Não tem essa coisa do heróis idôneo ou de uma jornada a ser transposta. Bem, ao menos não aqui no primeiro volume. A história segue a vida cotidiana de Worick, Nick e agora Alex, aprendendo mais sobre esse mundo e ainda decidindo se ficará com os rapazes e os ajudará nas missões ou se deve ir embora desse lugar cheio de gente ruim.
E falando em lugar, que incrível é Ergastulum! Quer dizer, não um incrível de belo e paradisíaco, mas no sentido de quase ser um personagem próprio dentro da história. Uma cidade de ruas abertas e vielas, com casas pequenas e diferente de uma grande metrópoles, ainda que pareça gigantesca.
Com esse clima de máfia lembra um pouco uma Itália fictícia, como se a cidade fosse inspirada nas ruas e um clima mais europeu. Em nada me lembrou o Japão, o que acontece em muitos mangás urbanos, já que é o ambiente na qual muitos dos autores vivem e se sentem confortáveis para recriar na ficção e fantasia. A autora do mangá mandou muito bem por ambientar Gangsta. em um mundo que soa genuíno e original, com um toque do velho continente. Todo o traço do mangá acaba refletindo esse aspecto.
Não há também, ao menos por enquanto, aquela coisa da reflexão moral, com mensagens de “não seja isso”, “não faça isso”. O que é uma boa, pois o risco de se criar um mangá pesado, cheio de conflitos e confrontos de moralidade é ter e querer passar ao leitor alguma lição moral. Se fosse esse o caso soaria como um clichê chato e esbarraria muito no problema de tudo ter que ser politicamente correto. Isso não parece ser uma problema aqui. Worick mesmo se revela como um gigolô e não há uma condenação social por parte da autora disso. Ele apenas é e pronto. Se é certo ou errado, não é obrigação da autora dizer ao leitor ou mostrar um personagem triste e arrependendo por suas decisões. São temas e passagens apresentadas de forma neutra, sem ativismo ou julgamentos na linguagem ao leitor. Não é pra menos que a classificação indicativa do mangá é 18 anos. Espera-se que o leitor tenha maturidade e cabeça para entender os temas aqui propostos, sem que a autora tenha que pegar na mão e vender questão morais de certo ou errado. Ainda bem!
Gangsta. está sendo publicado pela JBC em um formato mais luxuoso, páginas branquinhas, ótima encadernação, custando 15 reais (o primeiro volume custou 14 reais, antes do aumento que aconteceu no começo do ano). Sua periodicidade, pelo que entendi, é bimestral e atualmente consta com três volumes publicados no Brasil (e lá fora já saíram sete).
Não me parece um título que pese no bolso para quem não coleciona muitos títulos. Sai de vez em quando, tem um excelente acabamento e são poucos volumes lançados até então. Vale dar uma olhada quem se interessou e especialmente quem procura algo bem diferente e maduro no gênero dos mangás, mas sem aquele ar juvenil. Há uma ambientação própria, personagens diferentes e inusitados e uma proposta que te deixa curiosa para descobrir até onde esse estilo de vida de Worick e Nicola irá levá-los, em uma cidade como Ergastulum.
Voltarei para ler novas aventuras dessa dupla, com certeza!