Eu Sou a Lenda | Um conto de 1954 em um futuro apocalíptico em 1976! (Indicação & Trechos)
A primeira vez que ouvir falar em “Eu Sou a Lenda”? Talvez seja vergonhoso admitir, porém é a verdade: foi com a adaptação de 2007 com o ator Will Smith.
Só depois que assisti ao filme no cinema é que fui ler as críticas e perceber pessoas comentando que o filme era baseado em um livro e que até mesmo já existiam antigas versões feitas para o cinema dessa obra.
Versões estas que até hoje nunca as vi, pois são bem antigas. The Last Man on Earth é de 1964 e The Omega Man é de 1971. Não devem ser obras fáceis de serem assistidas nos dias de hoje. Teria que assistir com um baita olhar no passado, pensando nas décadas na qual os filmes foram produzidos. E isso nem sempre é uma tarefa fácil.
Felizmente a situação é bem diferente ao pegar um livro antigo para ler, onde a imagem do conto normalmente é criado dentro da mente de cada leitor. Há uma sensação diferente, ainda que se torne importante entender quando a história foi escrita e o quão diferente pode ser de um livro escrito nesta década. A linguagem é diferente, o retrato da sociedade pode soar destoante da nossa realidade e a própria narrativa segue um ritmo incomum em relação aos contos modernos.
Pense o quão bizarro é olhar para Eu Sou a Lenda, o livro original de 1954, escrito por Richard Matheson e que se passa em um futuro apocalíptico em 1976! Quer dizer, para a época em que o conto foi lançado o autor estava escrevendo sobre um futuro que seus leitores ainda não haviam pensado em vivenciar. Já hoje, ler Eu Sou a Lenda vendo um Robert Neville passar por um apocalipse em 1976 parece surreal! É mais uma viagem a um passado muito distante que nunca aconteceu do que um futuro distópico.
Basta pensar o quão estranho foi há alguns anos atrás quando chegamos ao futuro apocalíptico da franquia O Exterminador do Futuro. Ou ano passado, quando passamos pelo ano de 2015 de De Volta para o Futuro II. Não é para menos que muitos filmes e livros de ficção científica atuais estão indo mais longe nas previsões do futuro da humanidade, com futuros além de 2100, 2200, 2400 e assim por diante. Descobrimos que o futuro da ficção não vai acontecer em 20 ou 30 anos a partir daqui. Aí o jeito é jogar muitas destas novas histórias para daqui 200 ou 300 anos no futuro…
Descobrindo um clássico!
E cá estou. Com esta versão de Eu Sou a Lenda, lançado aqui no Brasil no final do ano passado pela Editora Aleph. Uma versão incrivelmente bonita, diga-se de passagem, em um formato meio pocket (20cm de altura por 12cm de largura) e com acabamento em capa dura. As 160 páginas do livro original se tornaram 384 páginas na versão da Aleph, com um texto e fontes bem espaçadas, bem centralizas ao meio de cada página, subcapítulos bem separadinhos etc. Um charme que só. Com um espaço ao final para uma crítica a respeito da obra e com uma entrevista com o autor, Richard Matheson.
Tem aquela preocupação da Editora por uma leitura prazerosa, e que se faz necessário aqui. Afinal é um livro bem antigo, a linguagem é diferente e a própria história difere muito da versão que muita gente deve ter na cabeça hoje em dia, que é a do filme de 2007 com o Will Smith. O formato pocket torna o livro mais acolhedor, é fácil de pegar, e as páginas passam em uma velocidade incrível. O que dá uma boa sensação de progresso.
Não é para menos que logo após a primeira semana com o livro já havia devorado a metade dele, estando bem próximo de terminar o segundo ato de quatro que o livro possui. Precisei parar a leitura para escrever esta indicação, pois não queria que Eu Sou a Lenda tivesse um único texto de impressões aqui no site.
Precisei guardar o resto do livro para poder voltar a falar sobre outros aspectos dele (além de seu fim) mais a frente, em um outro momento. A minha intenção hoje é apenas apresentá-lo a leitores interessados em conhecer a obra.
O horror de viver em um pós-apocalíptico em 1976!
Sabe a pior coisa de ser o último homem na face da Terra em 1976? Sobre o olhar de hoje em dia: a ausência da tecnologia! Will Smith até estava razoavelmente bem no apocalipse de 2012, com um arsenal e muita coisa para se entreter em uma Nova York devastada por uma praga que matou todos os humanos da ilha.
Robert Nevelli em 1976 tem no máximo um projetor de merda (considerando que as produções cinematográficas da época nem eram lá grande coisa) e um gramofone escroto com um acervo limitado de discos para ouvir. Ficar preso em 1976, sem tecnologia me soa muito, mas muito agonizante. Ao menos lendo-o agora, imaginando o Will Smith na letra G da prateleira de uma gigantesca locadora ou com um iPod podendo ser recarregado graças ao gerador que provém energia a sua casa, com basicamente milhares de músicas ao clique de um botão (ainda que aparentemente ele só conheça Bob Marley).
O mundo em 1976 era uma grande merda para nós, acostumados com a vida tecnológica de hoje em dia. E é curioso como esse é um sentimento que só pode ocorrer lendo este clássico agora, em um mundo onde posso escrever a respeito dele na internet. É uma percepção que obviamente não era a intenção do autor ao escrever o conto, mas que me faz suar frio nesse conto de horror, de me ver preso com Neville em 1976 do imaginário de Matheson ao escrevê-lo em 1954!
Há também que se dizer que diferente do filme, o conto original não se passa em Nova York. Robert Neville mora nas proximidades de Los Angeles. Há uma sensação de que ele vive mais no interior, mais afastado de outros lugares na qual talvez ele pudesse encontrar sobreviventes. Existe uma passagem no livro que explica que ele não consegue ir mais longe do que apenas meio dia de viagem, pois precisa retornar ao seu abrigo antes do anoitecer. Então o mundo não é seu playground, ele está preso a uma condição na qual um dia os recursos irão acabar dentro de sua “baia“.
É uma sensação diferente do filme de 2007, na qual Will Smith (estou usando o nome do ator para ficar mais fácil a conexão de quando estou falando do filme e quando estou me referindo ao livro) não sai de Nova York porque não quer, porque ali é o ponto zero e porque é ali que ele deve ficar. Robert Neville no original está preso! Ele não conseguir ir para longe, ele precisa ficar próximo ao seu abrigo.
A primeira parte do livro trabalha muito com o tormento, a depressão e até mesmo o alcoolismo de Neville. Talvez seja estranho ver o quão ele sente falta de sexo no livro, mas novamente, é a visão de Matheson em 1954 do futuro em 1976, de que as pessoas não tinham tantos hobbies recreativos como nós possuímos hoje em dia. Faz sentido.
Neville precisou demolir todas as casas ao redor da sua para que as criaturas não subissem no telhado de sua casa. Imagine o trampo que há nisso! Neville precisa plantar e cuidar de um jardim de alho, pois aparentemente o cheiro afastas as criaturas. Estacas precisam ser confeccionadas frequentemente, e não é algo fácil de fazer. As noites são um tormento para Neville, pois ele não tem nada para fazer, a não ser ouvir música enquanto ouve as criaturas em seu jardim, que esperam alguma falha em seu sistema de segurança para invadirem. No livro as criaturas sabem onde Neville mora e todas as noites, pontualmente estão lá para deixá-lo louco!
Aliás, veja só, no filme de 2007, as criaturas não são exatamente zumbis – podem ter o aspecto, mas não são – estava assistindo o making off do filme, que existe nas versão do DVD duplo e Blu-ray, e os produtores os chamam apenas de Cavaleiro das Trevas. Nada de zumbis ou vampiros. Mas fica meio que no imaginário dessa geração que as criaturas do filme mais parecem com zumbis do que vampiros, porque essa é a classe de monstros que está em nosso imaginário hoje em dia. Porém em 1954 não existiam muitos contos de zumbis. Foi na verdade romances como Eu Sou a Lenda que inspiraram outros autores famosos. Como, por exemplo, George A. Romero, famoso por A Noite dos Mortos-Vivos, que é de 1968.
Foi meio que uma surpresa descobrir que o conto original de Eu Sou a Lenda na verdade tem como destaque os vampiros. Mas não como aqueles do famoso Drácula, o autor até faz chacota disso no livro, mas como criaturas que possuem vários aspectos dos vampiros, só que se parecem mais como mortos vivos, ou os tais zumbis. O autor meio que mistura as duas coisas em um. Só que o começo do livro faz muito suspense sobre outros detalhes a respeito destes seres, até porque em grande parte o próprio Robert Neville não sabe muito a respeito desta praga que devastou toda a humanidade.
O que é outro ponto que difere o filme de 2007 do romance original. Robert Neville aparentemente não é ninguém. Ele apenas é um cara que deu a sorte de não ter sido infectado, provavelmente imune seja lá o que quer que tenha afetado todo mundo. No filme, Will Smith tem toda uma construção na qual ele acha que carrega uma responsabilidade gigantesca nas costas de tentar salvar a humanidade, enquanto a solidão o deixa instável e meio louco, já Neville no livro não tem nada a ver com a infestação, ele apenas sobreviveu a toda a loucura, e agora acha que pode curar quem ainda não morreu, simplesmente porque não aguenta mais ficar sozinho e porque não teve a coragem o suficiente para se matar nos momentos mais tenebrosos que passou desde que o mundo acabou.
Ler ou não ler?
É difícil dizer mais sem estragar parte das surpresas presente na obra. O que posso afirmar é que ter assistido o filme de 2007 não serve para base nenhuma em relação a obra original. Tudo é totalmente diferente.
Os personagens podem até terem o mesmo nome, mas são totalmente diferente em ambas as obras. A narrativa também se difere bastante. O livro é muito mais claustrofóbico e agonizante. O autor não conta demais ao leitor, deixando-o constantemente querendo saber mais. O livro já começa em 1976, meses após a queda da humanidade, em um momento onde Neville está a beira de desistir de sua vida, beirando a insanidade.
As próprias criaturas são um mistério no começo, assim como o paradeiro da família de Neville. Você sabe que ele perdeu entes queridos. Mas como aconteceu? Pra mim a forma como o autor lida com essa perda da família é muito mais impactante e traumatizante do que o que fizeram no filme de 2007. E o momento em que Neville decide compartilhar isso com os leitores do livro vem em um momento de pura tensão, na qual não se sabe exatamente para onde diabos a narrativa do livro vai parar. Chega a ser tocante.
Não quero entregar nada dos bons momentos do conto (até onde li pelo menos), mas o final do primeiro ato me deixou meio sem ar, com o lance do relógio e das horas, enquanto Neville se vê distante de sua casa, sem ter como voltar antes das criaturas saírem de seja lá onde elas se escondem.
O que posso concluir aqui é o quanto estou impressionado por estar empolgado com um livro escrito em 1954. Um livro que foi lançado quando a minha avó tinha aproximadamente a idade que eu tenho hoje! A versão da Aleph tem um prólogo escrito pelo Stephen King, enaltecendo Richard Matheson e que, no momento em li, sem conhecer muito do Matheson, não havia feito tanto sentido pra mim, criando apenas altas expectativas. Expectativas estas que felizmente sem cumpriram, ao menos até onde estou na história.
É claro que este é um tipo de conto onde talvez o seu fim seja tão importante quanto todo o resto. Ainda não sei como tudo vai terminar. Pode ser que o final seja muito ruim. Espero que não, pois o filme de 2007 tem um péssimo final (porém gosto do final alternativo de DVD). O caso é que, independente do fim, já me sinto feliz por ter dado uma chance e ter tido a oportunidade de conhecer esse clássico.
Em tempos onde as pessoas gostam de The Walking Dead e de história de zumbis, chega a ser curioso voltar no tempo e descobrir uma das principais bases para os contos de zumbis dos dias de hoje. Mesmo que sejam chamados aqui de vampiros. E é interessante que ainda com suas estranhezas de um pós-apocalíptico em 1976 (pensado em 1954), Eu Sou a Lenda ainda se mantém como um conto assustador e denso, que prende a atenção do leitor desde suas primeiras páginas!
Trechos!
Como faço com todas as indicações de livros que trago para o site, escolhi três trechos distintos da obra. O primeiro trecho é bem no começo, na qual Neville passa por um momento de stress mental e físico, preso em uma rotina trabalhosa que não está o levando a lugar nenhum, apenas deixando-o mais cansado e amargurado. O que se fazer quando o mundo acaba e você é o último home da Terra e precisa trabalhar como um condenado, pois a alternativa para isso é a morte, um horrível morte?
Segundo techo: o fim do mundo não é fácil quando se fica além do horário de segurança para que as criaturas não saiam na rua. Dias de névoa e neblina são um problema para Neville, pois como acompanhar o sol? Como confiar sempre em seu relógio? Correr para casa, após perder o horário é de gelar a alma do leitor!
No último trecho pertence ao segundo ato do livro, já se passaram dois meses desde que o leitor passou a acompanhar a jornada de Neville. E aqui está o personagem (e autor) tentando fazer a ciência e a lógica explicar os vampiros? Como um vírus, uma bactéria ou seja lá o que isso for pode fazer com que as pessoas virem vampiras? Por que o alho, por que a estaca de madeira? Ah uma explicação muito boa para o alho, só digo isso, ainda que Neville teste a teoria e não dê muito certo. Mas a linha de raciocínio para onde o livro leva o leitor é muito boa. Toda essa parte da teoria que a mente de Neville começa a criar no segundo ato é contagiante.
Gostou? Então só posso deixar aqui a recomendação de que procure e compre esta versão lindona da Editora Aleph de Eu Sou a Lenda! Dá para encontrar em lojas como a Amazon BR (26 reais), Submarino (39 reais) ou Saraiva (28 reais). *preços no dia da publicação deste post.
Trata-se de um romance, contos são histórias curtas, em alguns momentos você chama de romance, mas na maioria chama de contos, existe um outro filme não oficial I Am Omega, estrelado pelo Mark Dacascos, também de 2007.
Fala Quiof. Vamos lá. Então a minha intenção no texto ao utilizar a palavra “conto” foi mais como um sinônimo de “história” ou “enredo” ou “plot”, do que ficar pensando na tecnicalidade literária entre conto ou romance. Até porque no final das contas não faz diferença para a intenção do texto em si, que é indicar e comentar um pouco sobre a obra.
Entretanto, Eu Sou a Lenda apesar de ser considerado um romance, há também certos aspectos que poderiam enquadra-lo em um conto. Ele é curtíssimo (160 páginas no original) e mesmo que tenha a estrutura literária de um romance, com divisões em capítulos e subcapítulos, ele também segue certos parâmetros dos contos, como uma única narrativa, uma única visão, um único personagem.
Mas mais uma vez, não é a minha intenção discutir tecnicalidades aqui. Não utilizei conto como um substitutivo para romance. Da forma como vejo e interpreto, fica mais como se Eu Sou a Lenda fosse uma espécie de híbrido, um pouco de cada um destes tipos literários.
No mais, agradeço o comentário, acabou me fazendo refletir e pesquisar novamente a diferença entre romance e conto, lembrando que o tamanho não é o único ponto que difere um tipo do outro.
abração!
Não sei ao certo qual o critério, mas entre o conto e o romance tem a novela (tradução de novella ou novelette), alguns acabam caindo no falso cognato de chamar novel (romance) de novela, talvez seja o caso da obra.
Novela é quando existem vários plots e núcleos de personagens que se amarram dentro de uma trama que vai se emaranhando entre si. No caso de Eu Sou a Lenda, não caberia chamá-lo de novela (não tem como ser uma novela existindo apenas uma única trama e um único personagem protagonista). 😉