Opinião | O que dizer de Castle depois de 8 temporadas?

Nunca fui o maior fã de seriados live-action dos Estados Unidos. Tirando aqueles onde cada episódio é quase que independente dos outros (Fresh Prince of Bel-Air e House são os primeiros que vêm à cabeça) eu sempre achei essa mídia tão refém da lógica caça-níqueis que beira o ridículo, e se tem uma coisa que eu não suporto em arte é a lógica caça-níqueis. A quantidade absurda de fanservice e a incapacidade dos patrocinadores de deixar algo acabar quando tem que acabar (ouviu, Metal Gear Survive?) sempre esticando mais umas temporadas além do que devia são os melhores exemplos, e a lista de seriados que eu poderia citar é imensa. Por outro lado, sempre fui mega fã de histórias mirabolantes e complicadas que dessem um nó na minha cabeça (não é à toa que sou fã de Metal Gear) e por isso não foi com tanta surpresa que eu me vi viciado em Castle mais cedo este ano.

A série conta como o escritor de romances policiais, ricaço, mulherengo, debochado e bem humorado Richard Castle, brilhantemente interpretado por Nathan Fillion, pouco depois de matar o protagonista de sua franquia best-seller acaba virando o consultor mais improvável da polícia de New York, graças a uma série de homicídios onde o assassino transforma as cenas do crime em reproduções fiéis das cenas dos livros do próprio Rick. Em meio a um bloqueio criativo, ele vê na detetive de homicídios Kate Beckett uma fonte renovada de inspiração para escrever uma nova protagonista. Então, graças à sua amizade com o prefeito e uma vez resolvido o caso do assassino que o imitava, ele resolve continuar na delegacia (a contragosto de Kate) e ajudar a solucionar futuros homicídios para pesquisar pra sua nova série de livros.

A primeira grande cartada do seriado é justo o que me cativou de cara: roteiros mirabolantes e muito nó na cabeça, com efeito mindblow pra dar e vender. 90% dos episódios se resumem a ‘quem matou Fulano?’ e os roteiristas não perdoam com a chuva de informações novas e contraditórias quem vêm sem parar de todas as fontes: testemunhas, familiares da vítima, perícia (da autópsia, da balística e de TI), os próprios suspeitos (maiores responsáveis pelas reviravoltas que todo episódio tem) e o que mais se puder imaginar. Nesse sentido, Castle pega várias influências de outras séries policiais mas, ao contrário delas, sem vender nunca o peixe fácil do suspense excessivo, dos efeitos especiais mirabolantes ou do ‘olha como são heróis esses policiais’.

E é surpreendente como a série mantém a peteca em pé por 8 temporadas dentro da mesma premissa, oferecendo quase de tudo: homicídio passional, sequestro que deu errado, corrupção no poder público, ganância profissional, e por aí vai. Mas apesar das influências de séries policiais – e das homenagens que faz a todo tipo de seriado e à cultura pop em geral, desde easter eggs de Arquivo X e Firefly até um episódio inteiro ambientado numa versão fictícia da Comic Con – a maior inspiração na verdade vem de House (sobretudo na primeira temporada): com um protagonista egocêntrico e sarcástico que gosta de fazer comparações e de implicar com a mulher que trabalha com ele; e com a história voltada sempre para o mistério em si, para o juntar de todas as peças do quebra-cabeças, e nunca para o enaltecer dos personagens.

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E é aí que mora o maior mérito de Castle, apesar de eu adorar histórias complexas e bem boladas: no imenso respeito que a equipe por trás da obra demonstra com o lore que criou pra ela, e o não-enaltecimento dos personagens é só a ponta do iceberg. Os ambientes frequentemente flutuam entre o apartamento de Rick, a delegacia e a investigação de campo. Enquanto a família Castle conta com a mãe e a filha do protagonista (Martha e Alexis, respectivamente), na delegacia temos além da própria Kate também o capitão Montgomery, a médica legista Lanie, e os detetives Ryan e Esposito, e com o tempo novas pessoas chegam e outras saem. Embora pareça um lore já pronto e acabado – um grande centro urbano contemporâneo, sem elementos de fantasia nem nada – fato é que pouquíssimas histórias ambientadas no nosso mundo real conseguem construir um universo tão bem tratado pelos criadores que pareça acreditável.

Pra começar, o seriado poderia facilmente se chamar Beckett em vez de Castle, tantas vezes que a policial toma a frente de cena e tamanho o cuidado para construir a personagem da melhor detetive de homicídios da 12ª delegacia. Interpretada pela excelente Stana Katic, Kate decidiu entrar na polícia da Big Apple após a mãe ser morta numa aparente guerra de gangues e o caso ter sido arquivado sem nunca encontrarem o assassino. A série deixa claro desde o começo que a história de fundo da detetive é apenas a motivação pessoal-profissional dela, que ela não conseguiu o distintivo como um caminho para a vingança, e essa é a primeira de muitas vezes que a equipe de produção mostra respeito com a obra, mostra a maturidade de não seguir o caminho mais fácil e mais vendável.

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A segunda vez é quando, com o desenvolvimento dos personagens, nenhum deles acaba sendo estereotipado em nenhum sentido, nunca – tirando talvez que Martha poderia ser um pouco menos arquétipo de atriz frustrada da Broadway. E olha que só entre os principais (família e delegacia) temos homens, mulheres, gente branca, gente negra, descendente de latinos, descendente de asiáticos, um imigrante irlandês, uma idosa e uma filha adolescente. E se for acrescentar os personagens temporários de cada episódio, a variedade aumenta mais: de profissões, de etnias, de religiões, de orientação sexual, de faixa etária, de praticamente tudo.

Rick é infantil e zuero em tempo integral, o que não impede que seja um pai solteiro dedicado e preocupado. Da mesma forma, Kate é durona e viciada no trabalho de policial, mas isso não a torna insensível ou agressiva. Nem Ryan e Esposito existem pra fazer contraste com ela, para que através da incompetência deles o público veja como ela é boa. Ao contrário, ambos são bastante eficientes na polícia e têm suas histórias de fundo desenvolvidas. Assim como Martha e Alexis não são apenas um alívio cômico. De novo, ao contrário: algumas das cenas mais sérias do programa envolvem a relação do escritor com as duas, porque (Captain Obvious) as três pessoas são uma família e se tratam como tal. A relação pai-filha entre Rick e Alexis, aliás, é uma das mais bonitas e acreditáveis (senão a mais bonita e acreditável) que eu já vi na vida em qualquer obra de ficção.

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E nada disso faz com que os diretores queiram apelar exaltando como Rick e Kate quebram paradigmas de gênero. Eles só são assim porque essa é a personalidade deles. Nem apelam enaltecendo o quanto mulheres, imigrantes, negros, e gente que vem de famílias pobres e/ou de famílias latinas ou asiáticas entraram na polícia apesar da maré social, e são competentes e honestos no ofício ao contrário do que reza o preconceito. Eles são, mas isso é tratado com naturalidade, porque é assim que tem que ser. Ryan e Esposito só não são tão bons policiais quanto Kate porque é assim que a vida real é – algumas pessoas são mais sagazes no trabalho que outras, por n motivos – e pronto. A série entende que apelar não é valorizar, e sim depreciar os personagens. Esse respeito com o lore parece (e é) algo simples e óbvio que todas as produções deveriam prezar. Mas por mais básico que seja, é isso que faz as pessoas da ficção, aos olhos de quem assiste, parecerem… pessoas. E não caixas pré-fabricadas: pra fornecer riso fácil, informação ou o clássico fanservice sob medida ‘nossa, amo tal personagem, olha como ele/ela é foda’.

Os 10% dos episódios que não se resumem a ‘quem matou Fulano?’ são quando a resposta já é dada ou essa pergunta nem entra. Às vezes é óbvio que foi a máfia irlandesa, mas cabe à polícia se infiltrar nela para provar. Alguma outra questão toma a frente, e é aí que os personagens mais são aprofundados. Nesse sentido, é fácil dizer que os episódios sobre o esclarecimento da morte da mãe de Kate são quase a coluna vertebral da série. Cada temporada tem um ou dois (com folga os melhores episódios), e o seriado mantém um equilíbrio eficaz entre os episódios independentes e o desenvolvimento das duas tramas de fundo: o caso do assassinato de Johanna Beckett, e a relação entre Kate e Rick. Não é nenhum spoiler dizer que eles terminam juntos, já que desde 1° episódio existe uma tensão sexual e romântica constante. Mas sem qualquer tom de fanservice e sem nenhuma pressa de satisfazer a fanbase, o seriado deixa a relação entre os dois fluir naturalmente: de colegas de trabalho que implicam um com o outro a grandes amigos que são crivelmente leais um ao outro (‘Always’), e que eventualmente começam e terminam relacionamentos com terceiros antes de namorarem entre si, e daí por diante.

Infelizmente nem tudo são flores. Castle também sofre da síndrome ‘tá dando dinheiro, temos que esticar’. Quando o assassinato de Johanna já foi solucionado e todos os personagens já estão com os seus arcos concluídos, a série inventa um plot device que vem completamente do nada só para ter pretexto pra mais duas temporadas. Tentaram substituir uma trama de fundo por outra, que simplesmente não segura as pontas, e daí é só ladeira abaixo. A gente vê roteiristas e atores competentes tentando não deixar o barco afundar, mas não tem competência que resista a tamanha forçação de barra (tanto na nova trama de fundo quanto em alguns episódios independentes desesperados por incluir novidades, mas felizmente têm outros que seguem a velha fórmula e dão conta do recado), que fica mais óbvia a cada reviravolta artificial. Apesar disso, Castle continua sendo uma ótima pedida para qualquer pessoa que goste de histórias bem boladas, de sentir a cabeça explodir por dentro e o cérebro dar uma cambalhota, pois praticamente todo episódio faz isso. O respeito e maturidade que a equipe responsável dedica a tudo, da relação pessoal e de trabalho entre escritor e detetive à variedade e particularidades dos personagens, só servem pra aumentar o carinho de qualquer fã. Pois o que qualquer fã mais quer, mais do que solucionar um homicidio ou prender um assassino, é sentir que o que passou pela tela valeu a pena. Pra mim, que não curto tanto seriados, Castle valeu. Always.

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