Cheguei a comentar no início do mês que estaria dando uma olhada, pela primeira vez, no recém relançado Duna de Frank Herbert. Na ocasião já tinha lido o primeiro capítulo do livro. Achei promissor, mas ainda não consigo dizer mais do que isso. Porém dois ou três dias depois sou apresentado a uma outra obra, outro clássico também da década de 60: Um Estranho Numa Terra Estranha de Robert A. Heinlein. E todo meu cronograma mudou…
Cai na tentação de ler o primeiro capítulo de Um Estranho Numa Terra Estranha – que para condensar o longo título vou chamá-lo de “Um Estranho” em algumas ocasiões – e cá estou, duas semanas depois, com um pouco mais de quarto de suas 569 páginas devoradas.
O livro é dividido em cinco partes compostos de 39 capítulos ao todo. Para escrever esta indicação acabo de terminar o décimo primeiro capítulo, em algum momento da segunda parte dentro de sua divisão. E tal como sempre ocorre nos textos do site este é só o primeiro texto sobre Um Estranho. Haverá outras oportunidades na qual voltarei a falar dele novamente por aqui, conforme a leitura for avançando, até o momento em que concluí-lo.
Do que se trata?
Um Estranho Numa Terra Estranha traz a história de um marciano, mas que na verdade é um ser humano, que cresceu e viveu até uma certa idade em Marte e que de repente é convidado a conhecer o planeta Terra, um mundo com uma cultura em que nada se parece com a que ele conheceu no planeta vermelho. É em sua essência, um daqueles contos de choques culturais.
Neil Gaiman (autor de Deuses Americanos e outras obras épicas) faz uma pequena introdução no início do livro, na qual compara o protagonista de Um Estranho com Mogli, de O Livro da Selva (The Jungle Book, de Rudyard Kipling, de 1894), só que esse Homem de Marte foi criado por marcianos ao invés de animais em uma floresta.
Eu nunca li O Livro da Selva – talvez devesse – e não sou fã nem um pouco fã da animação clássica de Walt Disney, tampouco do recente live action produzido pela casa de Mickey Mouse, mas entendo o que Gaiman escreveu. Valentine Michael Smith, o Homem de Marte, é um garoto criado por lobos que nunca viu seres humanos ou sabe qualquer coisa sobre como nós vivemos em sociedade. Nossas regras, nossos costumes. O título do livro é bem literal em seu significado.
Mas como é possível um humano que nunca viu outro ser humano vivendo em Marte com marcianos? É exatamente este o ponto chave que me capturou logo no primeiro capítulo do livro! Isso não é um daqueles enigmas que o autor vai esconder para o final do livro, para meu alívio.
Depois de começar a ler Um Estranho comecei a me perguntar se o filme Perdido em Marte – aquele de 2015 com o Matt Damon plantando tomates no planeta vermelho – não tem alguma influência retirada da obra de Heinlein. Não é exatamente a mesma história, mas a premissa do livro é bem parecida com uma situação presente no filme.
No livro uma tripulação é mandada para uma expedição em Marte. Não darei os detalhes específicos porque é neles que a leitura te pega de surpresa e te deixa imerso. Basta saber que esta tripulação era composta por casais. Uma última mensagem da nave Envoy para a Terra dizia que no dia seguinte a nave pousaria em Marte. Após isso nunca houve qualquer outra mensagem vinda de qualquer membro da tripulação. Chocante? Mas a coisa não para por aí.
Talvez você saiba, mas é bom dizer, ir para Marte não é tão rápido quanto ir para um final de semana para o litoral ver o mar. E ao contrário de Perdido em Marte, em que nós aqui do planeta azul temos satélites tão potentes que conseguem ver o solo de Marte e até mesmo alguém plantando tomates lá, em Um Estranho não há nada disso. Levou-se décadas até que a Terra conseguisse mandar um novo foguete e uma nova tripulação para explorar Marte. Quando estes astronautas chegaram lá fizeram duas enormes descobertas: a Envoy havia conseguido pousar em Marte… e que o planeta vermelho é habitado por marcianos.
Valentine Michael Smith, ou apenas Smith para encurtar, é um humano nascido em Marte, fruto do amor de dois astronautas. Mas ele nunca conheceu seus pais, por circunstâncias que não quero revelar aqui. Smith nunca conheceu um ser humano. Marcianos o adotaram e o criaram, sob sua cultura, suas regras, seus costumes. Mas Smith aceita voltar para a Terra, conhecer sua verdadeira raça, por mais estranho que isso vai parece para ele.
Usucapião em Marte
Talvez você tenha sentido que contei um pedação do livro, não? Errado. Estas informações estão apenas nos dois primeiros capítulos do livro. Ela é apenas a premissa base dele. Ao contrário do Mogli, que é sobre um menino vivendo na selva com animais falantes (e que sabem cantar na visão de Walt Disney), Um Estranho não é sobre Smith vivendo em Marte. É justamente o que acontece com ele depois de ser retirado do habitat na qual viveu por toda a sua vida. É justamente sobre o choque cultural entre mundos tão distintos.
E o mais legal, ao menos nesse início em que estou lendo, diz muito mais a respeito de implicações de um humano vivendo em Marte, do que ele de fato ter liberdade para viver em nossa sociedade. Smith é prisioneiro do Governo nesse primeiro momento, pois eles não sabem o que fazer com esse homem marciano.
Smith é filho de dois importantes astronautas, de uma tripulação que é herdeira de bens multimilionários. Smith é o primeiro homem a habitar Marte, e existe uma lei na Terra a respeito de habitar terras que não pertencem a ninguém. Apesar de existir marcianos, seria Smith dono de Marte? O Governo simplesmente não sabe lidar com um homem que pode ser dono de um planeta, ou acabar se tornando um dos homens mais ricos (e poderosos) do mundo. E Smith não tem qualquer consciência disso. Ele não sabe o que é dinheiro, posse ou poder. Smith sequer sabe o que é uma mulher!
Este é um dos outros pontos que despertou meu interesse na obra de Heinlein. A perspectiva que um ser de outro planeta, ainda que um ser humano, não pode simplesmente ser solto livremente em uma sociedade na qual ele nunca fez parte. Talvez ele sequer conseguisse sobreviver, ao menos não enquanto não aprender nossos costumes e regras. Sem mencionar que ele é uma personalidade tão famosa quanto um ator de cinema.
Fora que há esse problema legal sobre seus direitos e suas posses. Isso porque o livro sequer arranha muito na ideia de cientistas querendo dissecar o pobre Smith para entender melhor como ele sobreviveu ao habitat de Marte. Claro que o leitor ficará curioso quanto aos marcianos e seu modo de vida em Marte. Não se preocupe, o livro irá abordar um pouco disso também mais a frente.
Smith, o Homem de Marte, é peça central de Um Estranho Numa Terra Estranha, mas ele não necessariamente funciona como protagonista principal do livro. Nesse ponto o leitor irá ver muito pouco sobre Smith e mais sobre aqueles que estão à sua volta e como a presença desse estranho ser irá afetar estas pessoas.
A enfermeira e o repórter
Eu gostaria muito de comentar sobre Jubal Harshaw aqui, porque ele é um daqueles personagens excêntricos que dificilmente alguém que ama ficção científica vai esquecer, mas ele só vai aparecer como ponto importante da trama a partir da segunda parte do livro. Então fica apenas a menção dele, na qual voltarei a falar mais a respeito quando voltar para escrever um novo texto sobre Um Estranho.
Antes de Jubal, a história irá trabalhar apresentando a perspectiva de dois personagens chaves para o andamento da trama, Ben Caxton e Gillian (Jill) Boardman. Inicialmente achei meio clichê apresentar um repórter meio sabichão demais, em um nível Lois Lane de Superman, querendo descobrir a verdade sobre Smith e sobre o Governo cerceando sua liberdade, mas essa sensação passou rápido. Ben acaba sendo importantíssimo ao leitor e para o desenrolar da trama nesse inicio.
Enquanto Jill é a protagonista feminina que o livro tinha que ter ao colocar um homem que nunca viu uma mulher em toda a sua vida. Ela é a enfermeira, aquela que irá se solidarizar por Smith e que será responsável por mudar (de repente até salvar) a vida do Homem de Marte, de um jeito que ela sequer chegou a imaginar que faria.
Heinlein consegue criar personagens tão carismáticos e únicos quanto Smith acaba sendo. E quero falar muito pouco aqui sobre Smith porque uma das grandes satisfações do livro nesse início são os momentos em que ele está em contato com algum personagem, enquanto o leitor está descobrindo mais sobre quem é esse ser que nunca teve contato com aquilo que para nós é tão natural.
Acaba sendo agradável que o livro seja composto por personagens adultos, em contraste com os tantos livros que existem hoje em dia na qual seus protagonistas acabam sendo jovens adultos (para não dizer adolescentes), no sentido de personagens que ainda estão naquela fase de descobrimento de quem são. Smith não é exatamente esse tipo de personagem e nem os demais protagonistas que estão presentes aqui. Há um ritmo, uma linha de diálogo e pensamento bem distinto de um romance ou ficção científica mais juvenil (como Coração de Aço, por exemplo, ainda que este seja excelente em tantos outros aspectos).
Claro que ainda há muitos pontos e elementos há serem descobertos no livro de Heinlein. O mundo na qual se passa a história, por exemplo, ainda tem várias lacunas de mistério para mim. É um livro que se passa em um futuro não muito exato o quão distante estaria de nosso presente, ou da realidade da década de 60 na qual ele foi escrito. Aqui o homem já tem sua primeira colônia espacial próximo a lua, enquanto na Terra carros podem voar e são autônomos (voam de forma automatizadas) na qual as pessoas aterrissam no topo dos edifícios. Talvez haja um problema com o meio ambiente, não sei dizer exatamente ainda.
O caso é que o começo de Um Estranho esconde do leitor vários destes aspectos, talvez esperando apresentá-los quando Smith estiver pronto para conhece-los. A narrativa tem um pezinho naquele clima de suspense investigativo. Ben quer descobrir mais, Jill está solidarizada com a causa de um homem que não conhece o mundo e está preso por razões que ele sequer entende, enquanto o Governo também não está o prendendo porque é exatamente um vilão sem escrúpulos, está mais pela velha máxima de temer aquilo que não se entende.
Sutileza de uma ficção científica social
Tudo isso parece fazer com que Um Estranho Numa Terra Estranha acabe, inicialmente, fazendo parecer justamente uma ficção científica bem sutil, muito mais focada no aspecto sociológico da situação apresentada do que um universo fantástico e incrível como outros clássicos na qual andei botando a mão nesse último ano.
Não é uma ficção extraordinária como Guerra do Velho ou de Neuromancer, não me parece ser essa a intenção de Heinlein até o momento. O toque futurista que o livro possui parece mais uma justificativa natural para à época na qual ele foi escrito, caso contrário, uma obra como essa poderia se passar nos dias de hoje, talvez uma década ou duas no futuro, talvez.
Claro que – novamente – estou me baseando apenas no que o livro me mostrou até o ponto que o li. Talvez esse aspecto mude mais à frente, e nesse momento ainda não sei se quero que mude ou vou me importar se mudar. O que não acredito que vá sofrer uma grande alteração é o lado social do livro, a apresentação de uma sociedade egocêntrica, cheia de regras, a um homem marciano que aparentar ser um cara realmente de paz e amor.
Não tem como não se atentar que a obra foi escrita em um período histórico na qual a sociedade como um todo estava se questionando a respeito de seus modos e costumes. A rígida e restrita década de 50 estava ficando para trás, enquanto a contracultura da década de 60 estava surgindo, com conceitos de liberdade e expressão até culminar nos tempos de paz e amor que atingiram seu ápice no inicio dos anos 70. O livro de uma certa forma, parece sentir estes ventos de mudanças de valores culturais, hábitos e costumes.
Smith é o contraponto entre velhos mandamentos e o livre pensamento moderno. Não é à toa que nos Estados Unidos ele foi (e ainda é) uma leitura importante para a época, fazendo um tremendo sucesso.
E acima de tudo o texto de Heinlein é uma delícia. Não é um texto complexo, como o que encontrei em Neuromancer, nem muito datado como o de Nós. A linha narrativa de Um Estranho sobrevive magnificamente ao tempo, sendo que se eu não tivesse pesquisado que o livro havia sido publicado em 1961, poderia muito bem achar que ele fora escrito nessa década, como Coração de Aço ou Guerra do Velho. Sua narrativa é solta, sem soar datada.
A única coisa que talvez entregue o tempo de publicação do livro seja realmente seu tamanho. Ter mais de 500 páginas não é algo que normalmente as publicações atuais possuem, exceto quando o autor está lançando uma série de livros de uma universo específico e vai aumentando o número de páginas a cada sequência. Dito isso, é bem provável que se Um Estranho tivesse sido escrito nessa década seu autor o tivesse dividido entre dois ou três livros ao invés de um livrão enorme.
Não que isso seja uma crítica ruim. Acho que de uma certa forma é até um alívio encontrar um livro que não tem medo de seu tamanho e que não esmera ter uma sequência. Um Estranho Numa Terra Estranha começa e terminar aqui, fazendo o ciclo e proposta de seu autor. O que é uma maravilha já que hoje em dia há tantas séries e arcos que são esticados simplesmente para que autor venda mais edições e sobreviva em seu meio por mais tempo. De fato fico impressionado como existem autores do passado que criaram várias obras inacreditáveis sendo que uma não se conecta à outra. É possível um autor ter reconhecimento e fama e escrever mais de um único universo fantástico em toda a sua carreira. E é legal saber que Heinlein também é o autor de Tropas Estelares, que admito que sequer sabia que era um livro – que agora quero muito ler – e não apenas um estranho filme de Hollywood.
Enfim, acredito que tenha mencionado tudo que gostaria. Alguns dos trechos iniciais do livro já estão espalhados ao longo da postagem, a última está logo abaixo. Espero que tenha deixado o leitor curioso para dar uma espiada, para ver um pouco mais sobre tudo aquilo que comentei aqui e que vá conhecer a obra.
Um Estranho numa Terra Estranha não chegou a ser adaptado aos cinemas, mas em 2016 o canal norte americano Syfy mostrou interesse em produzir uma série baseada na obra. Porém o Syfy promete muita coisa desde seu sucesso com Battlestar Galactica e nem sempre cumpre seus projetos ou as expectativas do público, mas tudo isso acaba tornando possível que as pessoas ouçam falar mais desse livro nos próximos anos. Vale a pena então dar uma olhada nesse lançamento da Editora Aleph, que por sinal, como sempre, tem um trabalho gráfico e de capa de encher os olhos.
Pode apostar que em breve voltarei a falar mais de Um Estranho Numa Terra Estranha por aqui, quando estiver em pontos mais avançados da obra e tiver novos elementos para abordar a seu respeito. Enquanto isso, Marte continua lá, esperando pela nossa visita…