Tenho apresentado várias obras de ficção científica aqui no site desde que passei a acompanhar a biblioteca de títulos que a Editora Aleph tem disponibilizado em nosso mercado. Alguns destes livros são títulos da era moderna, mas sinto existe também uma razoável quantidade de clássicos que andei conhecendo nestes últimos meses. Duna é mais um destes clássicos e tenho certeza de que já conhecia sua existência, mas nunca sequer havia tido a oportunidade de ler o livro escrito por Frank Herbert em 1965. Até esse momento.
A Aleph já havia lançado uma parte da série de livros de Duna alguns anos atrás, mas como já faz um tempo e os primeiros livros se esgotaram, sendo difíceis de serem encontrados à venda hoje em dia, a editora optou por criar um novo projeto gráfico e relançar tudo de novo, com novos extras, um novo tratamento gráfico e nova capa. Este primeiro livro, chamado apenas Duna, se encontra à venda desde o mês de maio, enquanto o segundo livro, chamado Messias de Duna, está sendo lançado neste mês de julho.
Antes de começar a falar sobre o livro em si, acho que vale a pena citar o programa Total Recall Aleph, pois como a antiga coleção foi descontinuada tem aquela galera que quer ter toda a série completinha em um formato idêntico e a Aleph tem essa iniciativa na qual você pode mandar sua antiga edição para a editora e assim ganhar um desconto de 50% na compra da versão mais recente do título. É um programa bacana e o livro devolvido para a editora é doado para uma biblioteca pública. Há inclusive um site próprio com todas as regrinhas e de como esse projeto funciona, vale dar uma consultada lá se você for dono de uma edição antiga de Duna.
O primeiro contato…
Conforme mencionei lá no começo do texto este é o meu primeiro contato com Duna. É muito provável que tenha assistido quando criança ao filme de 1984 que adaptou a obra de Frank Herbert aos cinemas. Mas sendo bem honesto, se assisti não tenho qualquer memória a seu respeito. Pra mim é como se estivesse pisando em Arrakis pela primeira vez.
É sempre um pouco estranho conhecer um clássico das antigas tendo como primeiras referências obras não tão antigas quanto. Por exemplo, há pontos em Duna que me levaram para Harry Potter, Matrix, Game of Thrones e até mesmo ao bizarro (e hoje tosco) Ataque dos Vermes Malditos, um filme bem datado por sinal – lá de 1990 com Kevin Bacon ainda novinho pulando em pedras para que vermes gigantes que nadam pela as areias da deserto de Nevada não o devore.
Claro que Duna veio primeiro que tudo isso. É um clássico da ficção científica, que influenciou e ainda influencia uma geração de escritores e autores mundo afora. Veja bem, não estou dizendo que tais obras que mencionei tenham sofrido qualquer influência direta e exclusiva de Duna. Estou dizendo que existe a possibilidade do livro ser uma referência dentre as referências. É uma daquelas obras que parecem ter um pouquinho em tudo que existe nos dias atuais.
Encontrei em Duna elementos narrativos que envolvem profecias, a ideia de um salvador, um escolhido, na qual o protagonista é a chave de tudo, aquele quem irá mudar as premissas estabelecidas na trama central, aquele com habilidades que ninguém mais tem (Harry Potter e Matrix). Há também o jogo político, a guerra pelo poder, casas rivais, traições e alianças, a possibilidade de que o leitor não deve se apegar demais a certos personagens, porque existe a foice da morte beirando qualquer um dentro da trama (Game of Thrones). E claro, o elemento da fantasia que pode existir em uma boa ficção científica, no caso aqui um planeta chamado Arrakis, basicamente um planeta deserto na qual água é o bem mais valioso ao seu povo, enquanto é também um planeta de enormes e terríveis vermes gigantes que nadam pela areia, devorando qualquer coisa que se mexer em seu caminho (Ataque dos Vermes Malditos). Duna é uma mistura incrível de coisas legais que hoje é possível reconhecer em outras obras, mas pense o quão mais insano deve ter sido encontrar todos estes elementos pela primeira vez em um só conto em 1965!
Isso analisando apenas alguns dos pontos encontrados na leitura parcial que fiz do livro. Lembrando que Duna é um baita livro. A versão de 2017 que a Aleph acabou de lançar tem mais de impressionantes 670 páginas, contendo o conto original, além de outros extras, como uma introdução de Neil Gaiman (imagem acima), um glossário incrivelmente útil e até mesmo um mapa e notas cartográficas de Arrakis. Para escrever este primeira texto a respeito de Duna li um terço da obra, tal como faço em todos as indicações literárias que faço para o site (e que sempre insisto em repetir este informação a cada nova indicação), justamente afim de evitar spoilers e de ser um texto que só sirva para aqueles que já leram toda a obra. A intenção é justamente o contrário. Quero instigar novas pessoas a conhecerem a obra e a ficarem tão empolgadas quanto estou.
Se Duna se tornar uma série norte americana (como notícias andam dizendo que será em 2018), só com este primeiro livro imagino que seria possível fazer três temporadas tendo como base sua divisão, já que o livro é bem dividido em três enormes atos. Segmentos chamados de “Livro Primeiro: Duna”, Livro Segundo: Muad’Dib” e “Livro Terceiro: O Profeta”. Para escrever este texto, terminei o Livro Primeiro, mas sinceramente não devo (e nem quero) contar os eventos que concluem esse ato inicial do livro por aqui, porque é quase como aquela adrenalina de um fim de temporada de um seriado na TV.
Do que se trata?
Sem entregar demais, mesmo que este seja apenas o primeiro ato do livro, tudo começa com a apresentação dos membros da família da Casa Atreides, constituído pelo Duque Leto, sua concubina (quase esposa) Lady Jessica e o filho do casal, Paul. Estes são os três personagens mais importantes ao se iniciar no universo de Duna.
O livro apresenta um mundo na qual a humanidade não vive mais na Terra, na qual somos desbravadores do espaço, porém em uma ficção científica mais feudal. Não há grandes maluquices como robôs ou qualquer parafernália muito futurista ultra tecnológica. Existe um império que domina tudo e classes de famílias poderosas que são designadas a tomar conta de certos planetas em função de administrarem recursos para o próprio império. Daí as tais casas, tal qual como a referência mais popular hoje em dia seja justamente as casas dos núcleos de Game of Thrones.
A trama de Duna se inicia justamente quando o império decide que a Casa de Atreides deve ir para o planeta Arrakis, famoso em todo o universo por ser um planeta altamente hostil, de difícil controle. Um planeta desértico, na qual o povo é altamente religioso em suas crenças, lar de mortíferos vermes gigantes que devoram tudo que encontram em seu caminho pelas dunas de todo o planeta, mas também é um planeta na qual o império pode obter a especiaria, algo que pode ser extraído do planeta e garante a longevidade do usuário de tal insumo, entre outras benfeitorias. É um planeta perigoso, mas essencial para o funcionamento do império. E agora cabe aos Atreides cuidar de tudo por lá.
Claro que apenas ir para um novo planeta, por mais infernal que este possa parecer, não é o único problema em si. Arrakis já era controlado por uma outra casa, que basicamente está sendo expulsa de suas funções, a Casa Harkonnen, que nesse ponto o leitor só precisa entender que são os rivais dos Atreides. Há uma rixa e eles não estão satisfeitos de terem sido retirados de suas funções para com o império. Uma rixa que pode levar a uma guerra é claro, perfazendo assim um constante clima de tensão política e conspiratória dentro da narrativa do inicio do livro.
E lembra que mencionei profecias, pessoas com habilidades sobre humanas e tal? Bem, dentro do universo criado por Frank Herbert, para talvez compensar a ausência de uma ficção científica ultra tecnológica, o universo de Duna tem um fator evolutivo na linha biológica dos humanos, pois existem aqueles que são mais desenvolvidos mentalmente, com percepções ultra aguçadas, que detectam expressões das pessoas, como mentira, ansiedade entre outros sinais que basicamente entregam tudo aquilo que se passa dentro da cabeça de alguém que esteja sendo analisado por esse indivíduo altamente perceptivo.
Existe uma doutrina (conhecida como Bene Gesserit) que treina mulheres para tais capacidades da mente, ainda que também haja homens com grandes capacidades perceptivas (os Mentats) que funcionam como computadores humanos, que apresentam um grande poder de observação e lógica. É um universo que trabalha na hipóteses de que existem doutrinas que desbloqueiam o potencial do cérebro humano.
É aí que entra as figuras de Lady Jessica e Paul Atreides. Lady Jessica é uma Bene Gesserit, que treinou seu filho, o primeiro homem a receber tal treinamento, em sua doutrina. Paul também treinou as habilidades de Mentat, com um dos seguidores do Duque, se tornando assim um tipo peculiar dentro do universo de Duna, alguém que logo no primeiro capítulo do livro é cogitado para se tornar o escolhido, aquele alguém na qual profecias dizem que surgirá um dia e mudará o rumo de todo o universo. Bem, claro que dizer que ele pode ser não significa que ele será. Mas o autor não esconde nada disso do leitor, já deixando claro que ele é um personagem especial. É aquele que tem poderes acima de todos os outros, ainda que suas habilidades precisem serem treinadas e aprimoradas. Paul ainda é jovem, e o tempo irá provar se as profecias podem ou não estarem certas.
Bom que ele não é o típico adolescente chato de livros juvenis que precisa ser ingênuo e o imaturo que precisa se redescobrir para virar aquilo que já se presume que ele irá se tornar ao final da história. Paul já se apresenta como uma figura adulta, preso no corpo de um jovem. Ele já tem grandes habilidade, já tem a percepção de seu papel e já tem atitudes sensatas. É um personagem que tem conflitos sim, mas não são típicos de um adolescente chorão e mimado, mas conflitos internos entre aquilo que dizem que ele terá que se tornar e aquilo que ainda ainda não sabe se quer ser. Paul tem visões de um futuro que não lhe agrada, teme que tudo aquilo que seus mentores lhe ensinaram, que tudo aquilo que ele se tornou e ainda se tornará tenha lhe tirado um pedaço de sua alma que ele não poderá mais reaver. É um personagem complexo, ainda jovem sim, mas muito bem apresentado pelo autor.
Por fim, o primeiro ato de Duna é justamente essa apresentação das regras e personagens desse universo. Ver a saída da família Atraides de Caladan, seu planeta natal, para ir cuidar de Arrakis. É sobre ser apresentado ao mundo de Arrakis junto com os Atraides. Seus perigos, sua sociedade, suas crenças, falar sobre a especiaria, sobre os vermes, sobre a casa de Harkonne, enquanto uma fina tensão parece pairar no ar, com o leitor esperando que a qualquer momento algo ruim possa acontecer com estes personagens… e de fato algo terrível acontecerá.
E este ato inicial que li não tem apenas jogo político, caso esta não seja necessariamente a sua praia. Duna apresenta um bom mix de situações. Houve momentos de tensões no deserto com a apresentação dos vermes, tem cenas de tentativas de assassinatos, há um excelente momento envolvendo um jantar com inúmeros figuras importantes dentro da trama que criam tensão e teorias de conspiração, a descoberta dos costumes, da tecnologia de Arrakis que é instigante, além de que há toda a construção de personagens secundárias que não citei aqui, como os membros que trabalham para o Duque e pelo bem da Casa Atraides e que são tão interessantes quanto a trio principal, fora os Harkonnen, que são uma presenta distante no começo de tudo, mas tenha certeza de que quando surgirem a espera terá valido a pena.
Vale a indicação?
É um livro que empolga, seja por trazer parâmetros interessantes para seu universo, seja porque a narrativa contagia facilmente o leitor, ou porque faz uma ficção científica diferente de guerras estelares com ciência ultra avançada. É como um futuro feudal, com intrigas e habilidades que envolve a percepção humana muito antes de armas de lasers e teletransporte. Traz aquele fascínio por um mundo deteriorado, na qual a ausência de água é algo que cria os menores problemas não imaginados, em um planeta que é recheado de segredos, mas que explorá-lo não é algo que se possa fazer de maneiras convencionais graças aos tais vermes gigantes. Tudo representa perigo, seja a casa rival, seja os habitantes religiosos, seja o clima infernal, seja as criaturas que nadam na areia e Frank Herbert trabalha muito bem criando aquela sensação de perigo, como se algo ruim fosse acontecer a qualquer momento, e é sempre uma surpresa quando de fato ocorre. O suspense trabalha bem com a expectativa.
Quem não conhece a obra acredito que vale muito a pena conhecê-la. O livro não passa a impressão de estar datado, o texto não tem um linguajar ultrapassado, mesmo tendo sido escrito na década de 60. Não há valores sociais estranhos. A sensação é de realmente ser uma história atemporal, feita para durar facilmente por décadas, sendo ainda tão contextual e moderna quanto qualquer obra escrita nos tempos de hoje.
E esta nova versão 2017 está um show à parte, com uma edição de luxo em capa dura e bons extras. E não se deixe assustar pelas mais de seiscentas e tantas páginas da obra. Como disse acima, o livro é dividido em três segmentos bem divididos. Cada um deles tem duzentas e tantas páginas. É quase como se fossem 3 livros em 1. Eu fiquei satisfeito de ler todo o primeiro ato, que encerra uma fase da obra. A partir do segundo livro, as coisas mudam drasticamente em torno do primeiro, mas é um momento em que o leitor pode naturalmente dar uma folga e voltar posteriormente. E é sempre ótimo quando livros apresentam estes respiros – especialmente para aqueles como eu, que estão sempre lendo várias obras ao mesmo tempo.
Voltarei para Arrakis em breve, e nos veremos por aqui novamente, na segunda parte desse papo sobre Duna. Aproveite esse tempo e vá dar uma olhada neste clássico!