Celeste | Escale a montanha! (Impressões)

As vezes uma forma de resumir a proposta ou experiência de um título é compará-lo com algum outro que tenha certas semelhanças. Nem sempre fico contente de recorrer a tal recurso porque sinto que ao comparar posso estar diminuindo a inspiração, a qualidade de um game em detrimento do outro. Especialmente se ambas as obras forem excelentes no que se propõem a serem. E é exatamente o que pode acontecer se comparar Celeste, lançado agora no final de janeiro, com um indie da geração passada, que pra mim  já considero um clássico: Super Meat Boy.

Superficialmente estes dois jogos parecem compartilhar algumas ideias e jogabilidade que podem soar como parecidas, mas acho que as coisas param por aí. Celeste pode parecer como Super Meat Boy, no sentido de ser um jogo que desafia a memória muscular do jogador, que exige pulos precisos e agilidades de saltos em plataformas, onde morrer diversas vezes faz parte de sua experiência e… acredito que as comparações fiquem exatamente aqui.

Veja como me arrisquei. Agora preciso dizer que Celeste vai além da proposta de Super Meat Boy, sem que isso o desmereça, pois à época em que o título do garoto carne foi lançado ele reinventou seu gênero, possuindo qualidade únicas e originais que até hoje outros games nessa linha de jogo ainda não conseguiram criar. E cá estou dizendo que Celeste é parecido, mas é diferente. Possivelmente melhor sob certa perspectiva. Viu como comparar pode ser um problema?

Melhor definir assim então: Super Meat Boy é incrível e fenomenal, tal qual Celeste, que parece ter uma influência dele, só que vai além, criando outros elementos – e já irei abordá-los – que torna Celeste algo único, interessante e tão inesquecível e fantástico quanto Super Meat Boy foi quando lançado em 2010.

A montanha

Celeste é um indie game desenvolvido pela mesma equipe criativa de TowerFall, que leva o selo da Matt Make Games em parceria com outros talentosos artistas e estúdios, e isso incluindo o estúdio brasileiro MiniBoss, responsáveis de boa parte da incrível arte presente no jogo.

Porém ao contrário de TowerFall, indie game focado em batalhas multiplayer em arenas para quatro jogadores, Celeste é uma aventura single player, focado no desafio muscular e precisão de controles, enquanto uma intrigante (e inesperada) história surge para dar caldo ao prato.

A ideia principal do game é escalar uma montanha chamada Celeste – o que justifica o título do jogo obviamente – na perspectiva de uma jovem chamada Madeline. Trata-se de uma jornada de auto descobrimento. Madeline precisa resolver alguns conflitos internos e a montanha é… digamos… mística. Ajudando que Madeline veja uma parte de si mesmo em que ela precisa aprender a lidar.

E esse tipo de profundidade não é algo que se espera de um game do gênero de plataforma e agilidade. Isso acaba sendo um ponto de descoberta muito interessante e por mais que esteja revelando-o aqui, garanto que estou apenas arranhando a superfície de o quão surpreso pode se ficar ao se deixar levar pela trama do título.

Os personagens que Madeline irá encontrar em sua jornada são muito bem pensados. Todos agregam valor a trama e os conflitos que são discutidos ao longo da aventura. E por mais que a arte do game seja em pixel art, a ideia de ter os personagens desenhados a mão dentro das caixas de texto, mexendo seus rostos, passa a uma sensação de realismo para com eles na mesma proporção dos (bons) desenhos animados da minha infância (lá da década de 90). A representação deles quando a história surge é fantástica e nunca desaponta.

E por mais que a parte de animação tradicional nestas caixas de texto sejam incríveis não quer dizer que a pixel art acabe ficando indesejável ou em segundo plano. Pelo contrário. Essa escolha artística parece funcionar para enaltecer ainda mais quando o game está funcionando apenas em pixel art. Um estilo beneficia o outro. No começo talvez o jogador não sinta isso, pois o primeiro capítulo (ou mundo) tem cenários menos detalhados, porém em capítulos futuros, onde a explosão de cores e detalhes em pixel art explode na cara do jogador, acaba ficando evidente que o estilo gráfico não poderia ser de outra maneira.

Fora que é uma pixel art fluida. O jogador consegue sentir os detalhes, o movimento de como o personagem flexiona para pular, em como Madeline vai ficando ofegante quando mais tempo ela se mantém escalando um paredão, ao usar e direcionar o dash no ar e assim por diante. Ainda que seja pixel art, detalhes importam. E todo pixel aqui parece ter sido cuidadosamente bem pensado, seja em melhoria da jogabilidade e a precisão que a mesma requer, seja apenas porque o game é algo estonteante em seu visual.

A montanha Celeste tem paisagens únicas.O jogador passa por ruínas, trilhas abandonadas, hotel assombrado, locais sobrenaturais, caverna de cristais, precipícios onde o vento é seu pior inimigo dentro outros locais que fazem sentido que haja em uma montanha, ainda que muitos deles precisam ter conceitos mais abstratos de plataformas, porém que ainda casam com a ideia geral do ambiente na qual o mesmo é inserido.

Nessa direção o game possui oito capítulos a serem vencidos. Oito LONGO capítulos, onde cada um se divide em alguns seguimentos, mas todos são únicos e diferentes, baseados nas atmosferas exemplificadas no parágrafo anterior. Em cada um deles as mecânicas são adaptadas ao ambiente, impedindo aquela impressão de que o jogador está fazendo apenas a mesma coisa em cenários com cores diferentes. Nada disso! Celeste tem uma preocupação muito grande em fazer com a que a experiência entre os capítulos seja realmente únicos e diferentes entre si.

E não é só isso. Como se não bastassem os capítulos normais, que me tomaram aproximadamente 9 horas para serem vencidos (e não 100% cada um), cada um deles tem uma fita K7 escondida que abrem o que o jogo chama de Lado B do capítulo em si. São novas desafios ambientados com o que cada capítulo original se propõem a ser, porém extremamente mais difíceis.

Veja bem, não se trata da mesma fase só que com mais espinhos para ser mais difícil. São realmente novos ambientes montados com o ambiente do capítulo original, porém com desafios (e as vezes mecânicas novas) de criar bolhas nos dedos dependendo do quão capaz o jogador é com esse gênero de game. E se não estiver difícil o suficiente? Há o Lado C, que admito nem ter conseguido chegar perto. Uma fase do Lado B que resolvi fechar me custou 2 horas de um sábado e 500 mortes até vencê-la por completo. São fases para aqueles que curtem terem a paciência colocado a prova.

A escalada

Agora imagino que para este tipo de indie game – focado em precisão de pulos, memória muscular e reflexos ágeis – haja aquele tipo de jogador que não ligue muito para a história ou seu visual. Entendo quem goste desse tipo de jogo unicamente pela mecânica e desafio proporcionado. Há jogadores assim, e é até por isso que todos os longos e enormes diálogos (que são ótimos) de todo o jogo podem ser cortados caso o jogador assim deseje. E mesmo que você seja destes que pulam as cenas de história e só se importe com a ação, Celeste ainda é um game fantástico em termos de jogabilidade.

A ideia das mecânicas é simples. Pule, suba, escale e não caia para a morte. Conseguir executar isso é um caso à parte. E para fazer direito é preciso entender as regras do jogo. Madeline não tem força infinita, então ela se cansa escalando, restando ao jogador pular da parede ou cair em algum lugar seguro. A jovem garota também pode dar um dash no ar, algo como um segundo pulo direcionado por assim dizer.

Esse dash funciona somente em 8 direções: esquerda, direita, cima, baixo, diagonal superior para a esquerda, diagonal superior para a direita, diagonal inferior para a esquerda e diagonal inferior para a direita. E um detalhe importante é que estes comandos de diagonais possuem ângulos exatos, sem margem para uma diagonal para um ângulo mais perto de um movimento para cima ou para baixo ou mais para uma lateral. O dash é um comando absoluto, milimetricamente planejado para funcionar dentro das estruturas também milimetricamente planejadas. Sem margem para inventar movimentos dentro de trilhas muito bem planejadas.

Claro que saber que a trilha foi medida minuciosamente para funcionar em uma sequência exata de comandos não a torna mais fácil. Em diversos momentos é a memória muscular que precisa entrar na frente da velocidade dos olhos em ver o próximo movimento chegando e, assim, avisar o cérebro. Por isso é comum morrer bastante em Celeste. E tudo bem!

O game tem reinícios instantâneos, para o alívio do jogador. Não é preciso esperar um segundo sequer para a tela recomeçar e o jogador efetuar uma nova tentativa. O que é sempre um elemento imprescindível para esse tipo de game e por isso vale a pena ser mencionado.

Talvez a minha única crítica em torno de todos os aspectos do game seja exatamente nesse ponto dos comandos em direções absolutas e na forma como o joystick, no caso o do Xbox One, responde em muitos casos. O que estou dizendo é que em alguns estágios, em momentos em que não estava conseguindo passar de um desafio de maneira alguma, descobri que o analógico do controle não estava exatamente entendo meu comando. Nestes raros momentos (acredito que foram 2 ou 3 em todo o game) só consegui passar de um desafio usando o D-Pad do controle, pois ele tem comandos firmes e menos “interpretativos”, coisa que Celeste parece ter uma certa dificuldade em fazer.

Exemplifico melhor. Em certo estágio precisava dar um pulo e executar alguns comandos em sequência. Algo como esquerda, cima, esquerda, diagonal cima direita, diagonal cima esquerda (é só um exemplo), porém estava sempre morrendo no momento de fazer as diagonais. Isso porque no analógico as diagonais precisa ser exatas e eu estava posicionando o analógico em algo entre para cima e uma diagonal superior, e o game entendia que estava apenas posicionando para cima.

Não acho que se trata de um erro do game, deixando-o dividido em como interpretar o meio termo entre uma direção reta e uma diagonal. No D-Pad estes valores parecem ser mais absolutos (aperte pra cima e pro lado? é uma diagonal com certeza). E eu levei um tempo até perceber esse aspecto do movimento absoluto e a resolve-lo usando o D-Pad. Queria ter percebido isso antes.

Porém no geral Celeste não é um jogo frustrante. É justamente o contrário. Cada tela vencida dá uma sensação recompensadora de conquista e mérito, algo que a trama em si também passa ao jogador. Ajuda muita outras questões, como a do jogo poder salvar em qualquer momento dentro do estágio, permitido o jogador ir fazer outra coisa (descansar a cabeça, por exemplo) e assim retornar posteriormente quase do exato ponto em que parou, sem ter a obrigação de encerrar o capítulo para manter salvo seu progresso.

E essa acessibilidade vai além. Existe todo uma modalidade de assistência que pode ser ativada (ainda que não recomendada) permitindo que o jogador fique invencível ou tenha pulos infinitos, que podem ser ligados e desativados, como se fossem os clássicos cheats, para aqueles que realmente se sentirem travados em um pedaço da fase ou aqueles que queiram apenas curtir os desafios mais fáceis e acompanhar a história.

Penso em como algo assim é interessante para pequenos jogadores. Como eu tenho um filho pequeno, de 5 anos, que vive me olhando jogar e tem vontade de jogar games que eu jogo, essa modalidade de assistência é para ele algo que o permite brincar sem que se sinta frustrado por ainda não ter as habilidades necessárias que nem jogadores mais velhos as vezes sentem que não possuem (mas com treino e prática acabam adquirindo). Não é diferente do cogumelo dourado da invencibilidade nos atuais games do Super Mario (que agora entendo do porque existirem).

Voltando as mecânicas, Celeste tem capítulos individuais onde cada um trabalha com mecânicas próprias. Um deles, o que mais me chamou a atenção, e um dos que considerei mais difícil se passa em grandes precipitações onde o vento trabalha a favor do desafio. Ventos que tornam difícil pular e até mesmo andar, empurrando o jogador para trás se o mesmo não continuar se precipitando contrário a força do vento, que vem em diferentes direções e intensidades nas diversas telas do capítulo.

Em outro momento, o jogador está em uma caverna de cristais, com espinhos para todo lado, com blocos que se movimentam apenas quando Madeline interage com eles, com penas que a fazem voar somente por alguns segundos. Em outro o jogador está em um hotel assombrado, com espíritos bloqueando o caminho e indo e vindo entre plataformas. Cada capítulo apresenta desafios diferentes, ainda que todos sempre vão envolver pulos e uso do dash em momentos precisos.

Não existem grandes batalhas contra chefes de capítulos, porém há algumas surpresas ao jogador em alguns destes momentos. Ser perseguido é um destes elementos que acrescentam tensão e desespero nestes casos. Em alguns estágios até mesmo agilidade mesclada com puzzle acabam sendo criados para fazer o jogador pensar em não para onde irá se mover, mas como exatamente irá se mover.

O fato é que o game constantemente cria novas regras e elementos para continuar surpreendendo o jogador. Não se tem a sensação de que está apenas repetindo os mesmo comandos, vendo os mesmos tipos de desafio. Nada disso. O jogo é cheio de momentos únicos, mecanicamente ele progride muito bem, escalando sua dificuldade e adicionando novos elementos que tornam tudo mais complexo, mas dentro do que o jogador acaba conseguindo se habituar.

Considerações finais

Posso dizer com confiança de que Celeste se provou uma experiência muito mais rica, em tantos sentidos, do que achei que o game me apresentaria. Foi um tremendo prazer desbravar sua aventura. Os personagens me conquistaram, a agonia interna da Madeline é um sentimento que é muito fácil se reconhecer em si mesmo aliás, o que torna as reflexões e morais do game ainda mais pessoais e imagino que muitos vão se solidarizar com algumas das angustias da Madeline, de sua jornada ou dos personagens que estão em sua volta na aventura.

Não sou um grande especialista em efeitos de som e trilhas sonoras, e quando escrevo impressões nunca consigo dar grandes destaques para estes pontos, mas Celeste executa (aos meus ouvidos destreinados ao menos) um belo trabalho sonoro. Adorei o som que os personagens fazem quando estão falando, algo como aquela voz de trompete da professora dos clássicos animadas da Turma do Charlie Brown. Gosto de como o som as vezes para em certos momentos de contemplação do ambiente, como ele retoma para a ação em momentos de tensão e como a música também transmite calma e paz em diverso momentos da escalada. É sensacional.

O desafio do game também parece muito bem planejado e estruturado. Os oito capítulos principais apresentam sim trechos e segmentos difíceis, mas nem sempre o suficiente para travar o jogador. A dificuldade mesmo está nos segmentos do Lado B e C.

O jogo tem os morangos e corações, colecionáveis que estão lá, as vezes escondidos, as vezes a mostra, mas estes itens existem apenas pelo deleite do jogador decidir ou não coletá-los. Pegue-os se achar bom o suficiente para os desafios de alcança-los. O interessante é que isso cria muitos caminhos entre os capítulos, sem que haja indicação de qual é o que avança a fase e quais as salas alternativas com morangos, o que cria um senso de exploração e um valor de replay divertido para se repetir novamente um capítulo já vencido.

Celeste é um indie game de competência máxima, deixando quase nenhuma margem para a crítica. Todos os elementos chaves do game funcionam muito bem e encantam o jogador. Parece tranquilo dizer que é um título imperdível e que deve ser jogado por todos que apreciam um excelente game. Conquiste o topo dessa montanha. Não vai se arrepender.

Galeria

História é uma impressionante aventura
Estágios criam desafios sem serem impossíveis
Controles precisos e mecânicas engenhosas
Ambientes mudam e não existe a sensação de repetição
Colecionáveis opcionais e fases extras de extrema dificuldade
Visual, detalhes e toda a arte são incríveis
Som, música e efeitos, casam com demais elementos

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