20th Century Boys | Conspiração e manipulação em massa! (Leitura Concluída)
TEXTO SEM SPOILERS – É preciso enaltecer a qualidade de 20th Century Boys. Há quem diga que é a melhor coisa que alguém poderá encontrar no gênero seinen (categoria normalmente pensada para jovens adultos). Não consigo afirmar isso categoricamente, mas posso dizer que foi uma das melhores experiências que tive com mangás nos últimos anos.
Produzido pelo mangaká Naoki Urasawa, com história coproduzida com Takashi Nagasaki (créditos estes só informado dentro dos volumes em si), 20th Century Boys foi publicado no Japão entre 1999 até 2007, quando foi encerrado com 24 volumes encadernados – sendo que os dois últimos levam o nome de 21th Century Boys, porém tratam-se da continuidade da série principal e não devem ser lidos à parte da obra original. Aqui no Brasil o mangá começou a ser publicado em 2012, pela Editora Panini, e foi concluído em 2016.
Não vou lembrar quando exatamente comecei a colecionar os volumes nacionais, pois compro muita coisa em atraso, e quando não faço isso apenas fico com muita coisa guardada para leitura futura mesmo. O que sei é que em 2014, próximo do volume 9, fiz este texto aqui no site dizendo o quão incrível estava achando da proposta da obra.
Sei que depois disso segui lendo mais algumas edições até a conclusão da segunda fase da história, em meados do 16º volume. Também sei que em 2016 estava com alguns problemas financeiros e deixei de comprar as últimas quatro edições, algo que só vim conseguir a fazer no segundo semestre de 2017, com certo temor de que nunca mais as encontrasse.
Pensamento Extra – Há muitos títulos da Panini, como Monster também do Urasawa que hoje em dia são praticamente impossíveis de serem encontradas no varejo online, sendo possível a aquisição somente em vendas de usados. Isso me leva a pensar se a editora não deveria replanejar um pouco esse aspecto mercadológico no Brasil. Eu compraria fácil um box completo de Monster se fosse possível hoje em dia… e não é como se outros títulos ainda em publicação não sofressem desse mesmo mal das edições totalmente esgotadas, como é o caso dos primeiros volumes de One Piece ou o recém concluído Bleach, onde até mesmo suas últimas edições já estão ficando complicado de serem encontrados.
Voltando ao 20th Century Boys. Então, como estava dizendo, fui terminar a leitura da obra agora, no início de 2018, quando me deu vontade de retomar a leitura de onde havia pausado. E tudo isso apenas para dizer como é chato que haja esse problema da dificuldade para encontrar os volumes previamente lançados caso alguém se interesse somente agora em adquirir a obra.
Da conspiração para a manipulação em massa
Olhando o sucesso de obras como It – A Coisa (1986) e Stranger Things (2016) é fácil entender porque 20th Century Boys também tem um certo fascínio entre o público adulto, pois há nela essa pegada da nostalgia pelo passado, pela infância quase esquecida. O passado é algo que mexe com a gente.
A obra de Urasawa brinca com um grupo de jovens iniciando a vida adulta e que se veem no meio de uma conspiração, supostamente terrorista, que estranhamente parece ter relação com o passado deles, dos tempos em que todos eram crianças nos anos 70. Há um segredo no passado desse grupo, algo que eles fizeram na infância, mas que nenhum deles parece se lembrar. O que realmente aconteceu e quem do grupo está por trás desse mistério?
O mangá trabalha com esse suspense por todos os 24 volumes encadernados. Há sempre um novo mistério, há sempre uma nova ameaça. Personagens morrem, outros surgem e a grande sacada é que de certa forma o vilão sai vitorioso por mais tempo do que normalmente qualquer outra história de bem versus mal faria.
E o leitor não sabe quem é a pessoa por detrás da máscara, literalmente falando. A ideia desse personagem que se chama “Amigo” como o cabeça de todo um complô que só faz sentido ao grupo dos heróis torna tudo ainda mais intrigante. E possivelmente é o melhor personagem da série, melhor até que os mocinhos. É um personagem muito bem construído, ao menos em grande parte da obra.
Dá para dividir 20th Century Boys em três fases. A inicial, encabeçada por Kenji Endo, líder do grupo desde o tempo em que todos eram crianças. Ele é quem descobre que algo estranho está acontecendo, após um de seus amigos de infância supostamente cometer suicídio no tempo presente da trama. É a parte do mangá que apresenta os mocinhos, trabalhando muito bem as personagens e peculiaridades de todos. Mesclando muitos flashbacks de quando eram todos crianças. O ápice dessa fase é quando Kenji descobre que uma brincadeira que seu grupo fez na infância, onde eles escreveram uma história de como o mundo seria destruído e dominado no futuro, chamando estes rabiscos de “Livro da Profecia”, está se tornando realidade. Mais precisamente alguém está tornando as profecias reais, por mais absurdo que o conteúdo do livro seja aos olhos de um adulto.
A segunda fase – sem dar muitos spoilers de como a fase inicial termina – se passa alguns anos depois, quando a figura do Amigo já se revelou ao mundo, sendo que aos olhos de todos ele é o grande salvador da humanidade, exceto para o grupo de Kenji, que apesar de não saberem a real identidade do Amigo, sabem que ele esteve presente em algum momento na infância deles.
Essa é uma fase interessante, pois apresenta um novo protagonista ao foco principal da história, Kanna Endo, sobrinha de Kenji, que aparece na primeira fase apenas como um bebê e que aqui já é uma jovem adulta. E os planos do Amigo, que parecem ter sido interrompidos nos últimos anos, estão de volta quando um Novo Livro da Profecia é descoberto. E novamente os mocinhos estão reunidos para tentar colocar um fim em tudo e revelar a verdade ao mundo.
Esta segunda fase do mangá marca um ponto importante a meu ver, pois é quando a obra deixar de trabalhar com teorias de conspiração para algo mais voltado a manipulação em massa das pessoas e opinião pública. O mangá começa a trazer muitos elementos sobre política e religião aqui, especialmente em um momento peculiar onde o próprio Papa presencia uma cena de ressurreição na qual não quero dar mais detalhes. Esse é o clímax da obra, e provavelmente o melhor momento de toda a trama.
A terceira fase, que também é a reta final da obra, é pra mim a mais fraca, mas não menos interessante. É a parte apocalíptica da história. Ela também salta alguns anos após a segunda fase do mangá, e é chamada de “Ano 3 da Era Amigo”. Basicamente chegou a hora do confronto final. Os personagens estão um pouco mais velhos e a megalomania do Amigo chega a pontos extremos. É aquela hora do tudo ou nada.
Esse momento final do mangá é mais como uma lição de moral, uma amostra do que acontece com o mundo quando nos deixamos ser manipulados por aqueles na qual acreditamos ser grandes líderes, mas que na verdade estão mais para falsos profetas. Eu gosto como o Urasawa extrapola um pouco, dando ao exagero algo para deixar o leitor preocupado, além de tornar mais explícito essa reflexão dentro de todo o cenário proposto.
Claro que apesar da obra ter sido produzida pensando nos leitores japoneses e, portanto não sei categorizar os motivos, razões culturais ou políticos o autor estava pensando durante o desenvolvimento da obra, o tema não encaixa apenas ao Japão e também é atemporal. Assim essa situação se encaixa muito bem no cenário de muitos países e sociedades até os dias de hoje.
Um líder supostamente carismático, alguém com lábia para manipular o pensamento público? Onde é que estamos vendo isso? Dá para pensar no atual presidente dos Estados Unidos e também no atual cenário político brasileiro, com toda essa questão envolvendo a próxima eleição presidencial, as questões judiciais envolvendo nosso ex-presidente e como o povo parece dividido em suas opinião. As questões religiosas que aparecem no mangá, de uma forma nem tão crítica, mas mais de alerta, também encaixam muito bem na sociedade brasileira, especialmente quando olhamos no quanto ela está erroneamente enraizada no cenário político. Até a metáfora da máscara. O Amigo usa a máscara (literalmente) pela questão do mistério que promove o entretenimento do leitor, mas não é como se muitos políticos não usassem essa mesma máscara, só que metaforicamente.
Claro que sei que não são críticas diretas ao que estou dando como exemplo, mas não deixa de ser um tema interessante e que gera estas reflexões, estas similaridades. Em certo ponto da leitura me peguei torcendo para o Amigo continuar ganhando esse jogo de gato e rato a qual ele propõem ao grupo do Kenji só para ver até onde ele conseguiria continuar distorcendo a verdade e moldando a realidade. Eu estava querendo ver até onde o autor conseguiria distorcer a verdade e quando é que o exagera e a manipulação iria por si só serem expostas. Tipo, quando nos damos conta que a democracia sumiu quando o mundo elege um líder supremo que não é quem diz ser?
20th Century Boys me lembra um pouco da sensação que tinha lendo Death Note. De como achava interessante a possibilidade de um humano aplicar a justiça a um mundo injusto, onde a justiça não consegue lidar com todos e como a impunidade é sempre mote de muito debate, e toda a reflexão que a primeira parte da história em Death Note causa ao seu leitor por conta disso. Como decidir de forma neutra quem merece morrer ou viver? E será que cabe ao portador do Death Note decidir isso? É claro que no caso de Death Note chega um ponto em que a trama deixa de trabalhar com essa discussão e fica apenas na brincadeira de xadrez, de quem vai derrotar quem primeiro. Que também é uma forma de apresentar aquela moral de que uma pessoa normal com poder demais eventualmente se torna arrogante demais para conseguir lidar com isso. Enfim, um papo para outro dia.
Gosto que 20th Century Boys não se perde da forma como Death Note se perde após certo momento. A trama mantém seu foco em suas três fases: quem é o Amigo e como é possível derrotá-lo? E nesse meio tempo o Amigo não para o que está fazendo para ficar de picuinha com os mocinhos da história. Seus planos continuam em movimento e como personagem ele continua crescendo, assim como seus atos e a forma como ele conspira e manipula o mundo. Chega a ser perturbador as falas de alguns de seus seguidores próximo ao final da série. Em como as pessoas acreditam demais em uma personificação, independente de como a máscara e seus segredos são expostos e a verdade acaba se revelando. Ainda assim há aqueles que não acreditam em nada disso e que o Amigo irá salvá-los de todos os males do mundo.
Pequenos tropeços
Depois de todos estes elogios, preciso dizer que isso não significa que 20th Century Boys não tem seus problemas e pecados. O autor toma uma grande decisão na série quando resolve tirar o Kenji do centro da história e colocar Kanna como a protagonista que vai levar a trama até o fim. Não que seja ruim essa troca, mas certamente isso levanta algumas dúvidas.
E não que Kenij suma completamente da história também, pois ele tem grande importância ao Amigo, tanto que os flashbacks do passado da turma do Kenji continuam sendo apresentados até o último volume, pois é no passado que se encontram todas as repostas do mangá. E o autor guarda muito bem esse segredo até o real final da série. Por mais que dê para considerar que há dois finais, um para a segunda fase e um para a terceira, sendo que o da segunda é muito melhor.
Talvez minha maior crítica fique mesmo ao desfecho final do mangá. E como é difícil um mangá fechar de forma perfeita, não? Quase toda série sempre escorrega aqui e ali, forçando algumas coisas, ignorando outras. Em 20th Century Boys a minha impressão é que todo o terceiro ato do mangá dura mais do que deveria durar.
Ainda sem me meter na zona de spoilers, o que posso dizer é que chega certo ponto da trama em seu ato final que fica tudo muito absurdo demais. O desfecho peca pelo exagero, o Amigo força a barra, os mocinhos forçam a barra e o que até então funcionava com certo realismo entra em um cenário onde claramente funciona puramente porque estamos na ficção e fantasia. Não é uma solução que parece crível dentro do mundo real.
Claro que a obra não fica apostando apenas realismo a todo tempo. Existe uma brincadeira interessante no que diz respeito a realidade virtual, feito em tempos onde não existia a tecnologia de VR que tem ganhado destaque nos últimos anos e que é ao mesmo tempo impressionante, mas também bem distante do que ainda não é possível se fazer com tal tecnologia. E entendo que nem é o autor brincando exatamente com ficção científica, sendo que me parece mais um recurso que ele encontrou para ter uma narrativa como se os personagens adultos encontrassem o mundo do mangá que é apresentado ao leitor por meio dos flashbacks.
É um recurso válido, mas nem sempre acho interessante. Sem mencionar que é confuso o que nessa realidade é tido como verdade e o que é uma interpretação dos fatos pelo que o Amigo supostamente inseriu lá dentro.
Não estou dizendo que odiei o final do mangá, porém fiquei com a impressão de que a jornada em si é muito mais satisfatória do que sua conclusão. O que não é necessariamente um problema.
Por fim há um último ponto e não acho que seja um aspecto totalmente negativo, porém é um elemento que não funciona comigo: a questão da música. Existe toda um sentimento musical ao longo de todo o arco da série, o próprio título do mangá é o nome de uma canção famosa da década de 70. E no começo ela está ali na identidade da série apenas como algo extra, um toque especial, porém no arco final esse elemento extrapola também e apesar de ser legal a ideia da música unir as pessoas, pra mim esse é um recurso narrativo que fica muito mais incrível em outro tipo de mídia, como um próprio anime (que nunca veio a ser feito, o que é uma pena) ou um filme (o live action é muito bem elogiado, mas admito que não vi). Não acho ruim enfim, só não conseguiu me transmitir a magia que fiquei torcendo para transmitir. Não, eu não cantei a canção com os personagens. E talvez desejasse ter cantado.
O mais provável é que seja algo mais simbólico a questão da música, como a arte, a cultura, faz bem a sociedade, em meios onde políticos e líderes alienam a sociedade para que a mesma não pense demais. Nesse sentido, usar o recurso da música como algo que faz as pessoas se unirem e enxergarem a realidade como ela é, acaba sendo efetivo. Nós aqui no Brasil passamos por uma ditadura e a música em sua época era algo que vivia tentando se rebelar contra a opressão. Faz sentido.
Considerações finais
Não tenho qualquer dúvida que 20th Century Boys está no meu Top 10 de melhores mangás que já tive o prazer de ler até sua conclusão. Não cheguei a conhecê-lo no ápice de sua publicação, o que certamente deveria ter deixado os leitores malucos querendo saber o que aconteceria em seguida, porém fico feliz de ter conseguido acompanhá-lo agora e nunca ter tomado nenhum spoiler. Algo que também me esforcei para fazer aqui neste texto e incentivar quem nunca conheceu a obra a ir atrás e conhcê-la.
Urasawa faz um trabalho incrível com os personagens, seu traço é fantástico, ainda que eu tenha tido um problema para relacionar alguns rostos de personagens quando crianças e quando adultos. Um são mais evidentes, outros nem tanto. Mas toda a arte do artista é inegavelmente excelente.
O roteiro parece durar mais do que necessariamente precisaria. Não gosto de descobrir um grande segredo da série tão cedo, ainda com todo um terceiro ato que viria a ser desenvolvido. Isso certamente tirou um pouco da tensão do ato final. Mas ainda assim é uma história que satisfaz o leitor, sem ficar enfadonha ou problemática demais.
Talvez a brincadeira com o mundo da realidade virtual destoe um pouco do restante da narrativa. A primeira vez que esse elemento é usado até é interessante, mais seu retorno mais próximo ao fim soa como desnecessário em certa medida.
Dá para dizer que 20th Century Boys é uma obra impressionante, seja na hora de trabalhar os suspenses ou com os elementos de ficção científica. Há bons personagens e o autor tem grande coragem ao destrinchar uma cronologia que coloca uma vida inteira de diversos personagens como palco central da trama. É um mangá muito bem fechadinho, destes que não se encontra facilmente por aí.