Cama de Gato | Inusitada ficção social! (Leitura Concluída)
Cama de Gato é um livro… estranho? Não. Inusitado certamente é um melhor adjetivo para descrever a obra de Kurt Vonnegut, publicado originalmente em 1963 nos Estados Unidos. É um destes clássicos da ficção científica, escritos em outra época do mundo em que vivemos, com preocupações políticas e medos sociais, discussões religiosas e filosóficas peculiares. Quer dizer, mais ou menos, afinal guerra, fim do mundo, religião e formas de governo ainda são temas que até hoje discutimos e não chegamos a qualquer consenso das melhores ideias e formas para resolver conflitos e desigualdades sociais. Talvez por isso Cama de Gato tenha um espaço para ser apreciado até hoje.
Só que para entender melhor o livro é preciso olhar para o passado, mais precisamente da época em que ele foi escrito e do medo que as pessoas tinham de uma terceira guerra mundial e holocausto nuclear que poderia ocorrer se um novo conflito armado acontecesse. Foi o período da Guerra Fria, porém mais especificamente da Crise dos mísseis de Cuba em 1962. Possuindo essa base fica mais fácil entender porque esse livro é um clássico premiado e que mexeu com as pessoas à época em que foi lançado. E aí é mais tranquilo perceber a sua genialidade.
Pontual ao momento em que foi escrito, mas que ainda se faz interessante até os dias de hoje. É uma obra inusitada porque funciona como uma sátira, com um humor incomum, com elementos subversivos e incômodos. Ele é bom por causa destes elementos, não por seu enredo, ou sua criatividade em criar um universo fictício ou personagens memoráveis. Sua crítica social é inteligente e sagaz, daí o inesperado.
O protagonista que pouco importa
A ideia do personagem principal que não importa muito ao leitor, e que está conduzindo a trama não só pelo seu ponto de vista, mas também como o narrador do conto é um pouco estranho para aqueles não acostumados com esse recurso narrativo.
É quase como se fosse um livro dentro de outro, afinal é o Kurt Vonnegut escrevendo sobre um personagem que está contando que está escrevendo um livro. Este personagem sequer tem um sobrenome, mas a primeira coisa que ele faz no livro é revelar que se chama Jonah, mas também pode ser chamado de John. Mas, como disse, isso pouco importa.
John está contando uma história, não exatamente a sua história. Quem é, de onde veio, suas ambições ou outros aspectos pessoais de seu passado não são revelados. Cama de Gato começa justamente com esse personagem dizendo que resolveu escrever a história, a real história, do cientista que desenvolveu a bomba atômica, no caso aqui, Felix Hoenikker.
Esta pessoa existiu de verdade? Não, não existiu. Vonnegut deixa isso bem claro dizendo em uma única página no começo do livro a única frase “Nada neste livro é verdadeiro”. Se bem que, filosoficamente ou não, a sátira e a crítica social feito à sua época dentro de Cama de Gato não são exatamente mentiras. Em todo caso, isso deixa claro ao leitor que Felix Hoenikker não é exatamente o pai da bomba atômica e todos os eventos bizarros descritos em torno dele, sua família ou relatos da construção e pesquisa da bomba são puramente inventadas por Vonnegut para condução da reflexão a qual o livro se propõe.
E assim, dá para entrar naquela paranoia e dizer que o livro tem camadas de mentiras baseadas em personagens e eventos reais? Dá para esmiuçar dessa forma imagino, porém é preciso um nível de conhecimento muito grande de história para chegar a esse ponto. Então para este texto, vou apenas apoiar na trama e na ficção que o autor coloca em primeiro plano. Cama de Gato é um livro excelente para estudantes de filosofia, mas não é realmente a minha especialização.
Voltando. A família Hoenikker é ponto central da história, que move as engrenagens narrativas. O protagonista está em busca de história do cientista responsável pela bomba de Hiroshima. Quem era, como ele viveu (pois nesse ponto da trama ele já havia falecido) e exatamente respostas sobre como foi a vida e mente dessa pessoa que criou a maior arma que a humanidade já viu.
Estas informações são buscadas por meio dos três filhos ainda vivos do inventor, cada um com suas próprias excentricidades. Todos com histórias estranhas e não tão felizes em torno do pai, que não batia muito bem da cabeça. E isso parece ter afetado cada um deles a sua maneira.
Dá para dividir Cama de Gato em dois momentos. Esse começo em que o leitor está descobrindo mais sobre os Hoenikker, em que John investiga e entrevista pessoas de seu passado, querendo descobrir mais e mais sobre a figura de Felix Hoenikker, e até mesmo em quê ele poderia estar trabalhando antes de vir a falecer.
Nesse segmento inicial o protagonista está coletando história e informações, indo até mesmo a visitar a cidade onde o cientista cresceu, viveu e morreu. Tentando decidir se há ou não uma história a ser contada. Se há material para um livro. Até aqui o leitor de Cama de Gato não tem muita certeza aonde Vonnegut está exatamente querendo chegar. É um começo estranho e pouco esclarecedor.
As coisas começam a tomar um rumo quando o protagonista descobre que um dos filhos desaparecidos do cientista está vivo, isolado na ilha de San Lorenzo, que é uma sátira de Cuba, uma ilha também próxima aos Estados Unidos, governada por um ditador cruel e relativamente louco, Papa Monzano. Um lugar onde todos que cometem algum crime, qualquer que seja, é pendurado vivo em um gancho gigante até a morte. Pois é, isso mesmo.
É exatamente nesse segundo ponto do livro que as coisas começam a tomar foco e rumos ainda mais inesperados. Não é mais sobre um personagem recolhendo informações sobre um livro que ele deseja escrever, se aproximando mais do que ele viu e vivenciou na ilha de San Lorenzo e dos absurdos do lugar até culminar no clímax final que… bem… não cabe aqui ser revelado.
Este ato é o ponto em que o livro conquista o leitor a meu ver. A sátira não apenas contra Cuba, mas todo tipo de governo ditatorial, aristocracia e outras formas de preconceito. e até mesmo racismo. Em uma escrita não agressiva, mas usando a situação do absurdo como uma forma de humor sutil e incômodo.
Gelo-nove e Bokonismo
Fazendo o relato acima não parece que Cama de Gato é um livro de ficção científica, certo? Fica parecendo apenas um livro meio político, repleto de crítica social. E de fato o livro não tem tantos elementos daquela ficção que extrapola a realidade e criam futuros complexos e imaginativos. É muito mais pé no chão.
Não significa que o elemento da ficção, quando surge, seja ruim. Exatamente o contrário, é genial e foi justamente nesse ponto que o livro me conquistou. Tal ponto aparece ainda na primeira parte da história, quando John ainda está pesquisando sobre a história do cientista e ao visitar um colega de trabalho toma conhecimento de uma pesquisa envolvendo Gelo-nove.
Gelo-nove é algo até bobo, um cristal que ao entrar em contato com água ou qualquer coisa relativamente úmida pode instantaneamente congelar tudo ao redor, a perigosíssimos graus negativos de temperatura. O livro o apresenta como uma hipótese improvável dos limites da genialidade de Felix Hoenikker e da ciência em si. Porém cria uma dúvida se algo assim não foi realmente inventado? Esse é um questionamento válido a partir de certo momento da história.
E é interessante como John se questiona o real perigo de uma invenção assim. Gelo-nove em um copo de água não parece tão ameaçador, mas a coisa muda completamente de lado se derruba esse mesmo elemento em um rio que desemboca no oceano. Qual o raio de limite do Gelo-nove? Ele simplesmente vai congelando tudo enquanto estiver em contato com líquidos e umidade na qual possa continuar petrificando tudo ao seu contato? Isso sim é legal de se perguntar.
É uma solução até inteligente do autor se for pensar que o que ele está fazendo aqui é uma crítica ao poder destrutivo da bomba atômica. O que seria tão destrutivo quanto, mas que não use necessariamente a ideia de uma explosão? Se a bomba como arma tem como fator o calor que destrói tudo ao seu redor, o que seria uma arma que faz exatamente o contrário? Congelando tudo em um raio quase ilimitado de efeito? É assombroso como rapidamente a ideia deixa de parecer boba.
Outro elemento interessante de Cama de Gato e que agrega muito a sua narrativa é a religião que Vonnegut inventou para a obra: o Bokonismo. Eu não sou perito em religiões e nem sei dizer se ela é mais semelhante a algumas do que outras. Basicamente é a religião que dá uma linguagem própria ao livro.
O autor inventa termos, como karass, duprass, granfallon e muitos outros para definir grupos de pessoas e tipos de ideologias. Para fazer um gracejo crítico também na questão das terminologias usadas nas religiões, e como as pessoas seguem conceitos que nem sempre compreendem em sua totalidade.
Todos os termos são explicados e pontuados no livro. E o autor volta e meia utiliza-os dizer o que encontros ou situações estão sendo qualificadas dentro do bokonismo. E é interessante como esse elemento é a primeira coisa que é apresentada na história e somente próximo do fim o leitor acaba percebendo o tamanho e proporção é sua importância no desfecho da história.
O autor não está pregando uma nova religião aqui, está apenas satirizando como elas funcionam e como se misturam no veio político e cultural da sociedade na qual até hoje vivemos. Em San Lorenzo o bokonismo é proibido, seu criador é de lá, e todos que forem avistados pregando a religião vão para o gancho. Curiosamente, logo se descobre que todos ali são bokonistas, incluindo as autoridades no poder. Ninguém apenas admite para não ir para o gancho. Essa é parte da graça e da sátira criada por Vonnegut. As mentiras que dizemos a nós mesmos.
Considerações finais
Cama de Gato é um livro interessante. Não há questionamentos a respeito do que o leva a ser um clássico. Somente penso que trata-se de uma obra que está começando a dar sinais de envelhecimento, correndo o risco de que em algumas décadas ela perca um pouco mais de sua importância literária (isso acontece, clássicos ficam velhos demais e dão lugar a outros mais interessantes e pontuais aos tempos modernos).
Não que o mundo de hoje não passe por crises turbulentas, que não haja governos complexos e ditatoriais, ou até mesmo ameaças de novas armas de destruição em massa. Só que Cama de Gato é muito pontual ao período na qual foi escrito, à aquilo que Cuba representou um dia, e que hoje se houve bem menos a seu respeito. É como pensar na Rússia atual e na antiga União Soviética no passado. São coisas que diferentes, representam períodos históricos diferentes. Cama de Gato é um pouco assim ao leitor de hoje.
Se hoje o livro sofresse uma adaptação para uma série ou um filme, consigo facilmente imaginar a ilha de San Lorenzo sendo adaptada para representar muito mais um governo e uma região como a atual Coreia do Norte do que Cuba em seu passado. Faria sentido fazer esse tipo de mudança.
Fora que há alguns elementos dentro do leque de personagens da série que também seriam diferentes hoje em dia. Não sei, mas me parece algo de conto antigo a figura do anão, sempre mal compreendido, escrito de uma forma que sempre faça esse tipo de pessoa parecer um ser estranho, errado. Não que o autor faça estes personagens de forma a induzir certo preconceito, só que a forma como muitos dos autores de algumas décadas atrás representavam figuras como mulheres, negros e outros tipos de pessoas são mesmo diferentes de como eles são usados em obras literárias e até mesmo do puro entretenimento.
Entretanto a crítica social do livro em si ainda é pontual e sagaz. A forma como a política e ciência se misturam para criar novas tecnologias, do potencial humano de evoluir em tempos sombrios de guerra ou pó-guerra, de como lidamos com questões religiosas e até da proposta diferente do cristianismo e do surgimento de religiões que contrapõem a isso. Nesse ponto Cama de Gato manda muito bem, mesmo publicado há tanto tempo atrás.
Sem mencionar que é um livro de leitura rápida. Os capítulos do livro são curtinhos, tomam duas a três páginas no máximo cada um. Foram duas semanas para terminá-lo, lendo alguns poucos capítulos por dia, a cada folga que dava. O texto do Vonnegut é ágil, sem enrolação e o humor satírico ajuda na condução sem se tornar enfadonha ou exaustiva.
Indico, mas não é como as atuais obras de ficção que normalmente recomendo aqui no site. Não existe muito do fantástico aqui, a questão do ponto histórico é importante e a trama não é extraordinária e repleta de ação. Há momentos chaves memoráveis, há um humor inteligente e um desfecho genial. Se isso for o suficiente para te deixar curioso, leia Cama de Gato.