Encarcerados | Consciências sem corpos! (Leitura concluída)

Publicado lá nos Estados Unidos em 2014, Encarcerados (Lock In) é mais um dos incríveis trabalhos do escritor John Scalzi. Se o nome não lhe é familiar, talvez tenha lhe escapado a existência de um dos livros de ficção científica mais legais dos últimos tempos: Guerra do Velho. Se for este o caso, por favor dê um pulo nesta matéria em que pude dar minhas impressões em torno da obra.

Não sou nenhum perito literário. Não posso dar uma análise profissional em torno da escrita e da forma como Scalzi conduz seus leitores por suas obras. Posso apenas falar como um leitor normal. Destes que apreciam apenas por serem obras legais de serem lidas. Pela diversão. Sem se ater demais a tecnicalidade literária.

Dito isso, me agrada muito a escrita do autor. Tendo livro apenas três até o momento (Guerra do Velho, As Brigadas Fantasma e Encarcerados) posso dizer que gosto como a linguagem destes livros são ágeis e sem entraves. É fácil entender os personagens, o mundo a sua volta e a ficção científica aplicada pelo autor.

Scalzi parece planejar muito bem a condução de suas histórias. Não há situações sem sentido ou personagens que são largados ao relento após não terem mais um propósito imediato. Explicações de contexto de seus universos são fáceis de serem compreendidas na mesma proporção de que não são exaustivas.

Ter esse senso de saber condensar as coisas, sem ter a sensação de perda de conteúdo, é uma das coisas mais difíceis para quem escreve. Seja um escritor, um jornalista ou um mero blogueiro. John Scalzi parece ter um ótimo controle sobre isso. É admirável.

O Universo de Encarcerados

  • Síndrome de Haden

Lançado agora em março no Brasil, com todo o cuidado gráfico impecável da Editora Aleph, Encarcerados não é um livro de ficção científica que se passa incontáveis anos no futuro. Nada de viagens intergaláticas ou alienígenas. Muito menos aquele futuro com carros voadores, teletransporte ou raios lasers. Trata-se de um futuro crível, plausível com aquilo que somos hoje.

A princípio todos acharam que seria mais uma variação mortal do vírus da gripe. Mas foi algo muito pior. Inimaginável. Uma doença que desliga o corpo físico do infectado. Basicamente um estado de coma, só que totalmente consciente de seu estado. Sem poder se mexer, sem se comunicar, ouvir ou enxergar. Aqueles que sofrem da síndrome de haden são encarcerados dentro de si mesmos. O cérebro está lá, em plena atividade. Mas não dá mais ordem alguma a todo o resto do corpo.

Assustador, não? Esse é o mundo construído no livro. Um mundo que sofre desse mal há mais de duas décadas. Milhões de pessoas encarceradas dentro de si. Não há cura para a doença. Não há vacina. A cada ano mais e mais pessoas continuam sendo encarceradas.

  • Leve sua mente para fora do seu corpo

Sem encontrar uma cura, a ciência buscou soluções para que estas pessoas pudessem continuar vivendo. Não vou me aprofundar nos detalhes, pois é parte da diversão do livro ir descobrindo aos poucos. Basta saber que os encarcerados conseguiram um grande espaço na sociedade quando pesquisas encontraram uma forma de mandar as mentes destas pessoas para corpos robóticos, chamadas de C3.

Chamar de corpos robóticos talvez até seja um exagero, pois os C3 foram projetados para serem frágeis como corpos reais. Talvez o medo exatamente daquilo que a ficção científica clássica sempre brincou: da revolta dos robôs. Mesmo que aqui não seja inteligências artificiais, mas humanos controlando estas máquinas. Mesmo assim, melhor não arriscar.

Afinal há hadens de todos os tipos. Crianças, adolescentes, adultos. Pessoas boas, pessoas más. Não seria sensato ter um robô indestrutível com a mente de um psicopata que tivesse sido encarcerado, correto? Sendo assim, os C3 são quase como corpos humanos. “Quase”.

Não apenas isso. Há todo um aspecto de realidade virtual no livro. Existe um mundo virtual para hadens na qual não quero entrar em detalhes. Há também, devido à utilização de C3 pelas ruas, todo um mundo de recursos visuais que hadens podem transportar para a realidade e que somente outros C3 podem enxergar.

Claro que isso levanta outras questões, eu sei. E o corpo da pessoa encarcerada? Se o C3 sofrer um dano, o que ocorre com a mente ali naquele corpo? E os direitos e deveres? A qual ponto a sociedade mudou por conta disso. São perguntas muito boas para se descobrir lendo o livro. Não vou estragar essa surpresa.

  • Mente dentro de outra mente

Sendo assim é preciso entender que o que surgiu como uma assustadora doença acabou se tornando um dos maiores avanços da ciência: uma forma da mente viajar fora do corpo físico. Ao menos para aqueles que sofreram da doença. Pessoas que não contraíram à síndrome não podem fazer isso.

Há por fim, uma terceira classe de pessoas, cujo não vou explicar em detalhes, mas é preciso mencionar para dar contexto a proposta do livro. Há um grupo, muito pequeno, de pessoas que contraíra a doença e não foram encarceradas. Estas pessoas se tornaram Integradoras.

São pessoas únicas, que tiveram uma alteração cerebral que permite que encarcerados se conectem as suas mentes. Permitindo assim que um encarcerado assuma, temporariamente, o corpo desse integrador. E não direi mais nada. Fique apenas com isso em mente.

Corpos robóticos são úteis. Mas como já disse: não são totalmente corpos físicos, de carne. São quase. Ainda há experiências que C3 não podem vivenciar. Como o sabor de uma comida, só para ficar em um exemplo bem específico. Integradores podem permitir à hadens tais experiências.

Sci-fi Policial

Tudo que expliquei acima é uma parte muito contextual do livro. Não é a parte principal. Encarcerados é muito que um livro de crime, um suspense sci-fi policial. Não é para contar a história que sintetizei acima. Ela é só o caldeirão na qual um assassinato ocorre e que precisa ser solucionado.

O livro narra a primeira semana de trabalho do agente do FBI, Chris Shane, um haden. E não, ele não é o primeiro agente haden. Existem outros agentes do FBI que são hadens. A história se passa 25 anos após o primeiro caso da síndrome. Hadens estão plenamente adaptados na atual sociedade. Eles estão por toda a parte.

Claro que isso não quer dizer que o primeiro caso do agente Shade vai ser como qualquer outro caso.

Sua parceira, agente Leslie Vann, já tem anos de experiência à sua frente. E uma história que ele ainda precisa conhecer, pois há aí mais do que possa transparecer. Vann, de uma certa forma, me lembrou um pouco daquele tipo de agente policial que já viu coisa demais, que não se impressiona fácil. Parece uma personagem que facilmente estaria bem encaixada naqueles filmes policiais dos anos 80.

O crime? Ah, esse sim vai deixar o leitor com a pulga atrás da orelha. Não para descobrir o verdadeiro culpado. Isso o livro quase que não faz muito mistério (segura bem até onde precisa segurar). A grande viagem é descobrir como esse assassinato foi cometido. As regras aqui não se encaixam e algo parece muito errado. Sem sentido.

O livro acompanha essa jornada do agente Shane, em sua primeira semana no FBI, seu primeiro crime e um mistério que está muito além do que qualquer esperava a seu respeito.

O que achei? (sem spoilers)

Menos impactante do que Guerra do Velho. Mas não que seja um aspecto negativo. O livro em si parece menos despretensioso. Me pareceu muito um formato que poderia ser facilmente adaptado em um seriado policial, como tantos que já existem na TV norte americana.

É um conto criminal, mas feito em uma incrível roupagem de ficção científica. E o fato do autor fazer esse ficção mais palpável ao mundo real o torna ainda mais chocante, as vezes até mais assustador. É um futuro que certamente torcemos para nem sequer chegar perto do futuro real. Ao menos não em termos de uma doença tão avassaladora.

A ideia da consciência humana tomando controle de aparelhos eletrônicos é algo que a ciência tem estudado nas últimas décadas, com chips que controle braços robóticos e afins. Imagine o ponto em que isso se extrapolaria para um corpo inteiro robótico. É crível, ainda que ficcional.

  • “Ser normal”

E o roteiro é genialmente construido em torno dessa sociedade, totalmente adaptada a um mundo onde os tais C3 são tão comuns quanto uma pessoa com um corpo físico. Poderia dizer “pessoa normal”, mas esse é até outro dos pontos que o livro discute de forma muito sagaz. Isso quer dizer que um haden não é normal? Não é diferente da forma como muitas vezes excluímos pessoas com alguma deficiência no mundo real. O que é ser uma “pessoa normal” ou viver uma “vida normal“?

Um dos pontos mais interessantes, em termos de reflexão dentro da história, acontece justamente quando há um debate sobre o que aconteceria com os encarcerados se uma cura viesse a ser descoberta. Os encarcerados, hoje vivendo plenamente dentro da sociedade, gostariam de fato de serem desencarceradas e retornarem a seus corpos reais? A resposta parece simples, mas logo a discussão dentro do enredo deixa claro que não é.

  • Bom uso do clichê

Não quero entrar muito no detalhe dos clichês que o livro utiliza, pois isso faz parte da descoberta ao redor da trama. Mas dá para dizer que o livro brinca com alguns clichês clássicos dos contos policiais e de crimes que escalam para proporções além do que normalmente aparentam.

O autor não faz um mal uso destes clichês. Achei que estavam dentro da minhas expectativas. Não há uma reinvenção da fórmula ou algo muito inesperado. Porém é funcional dentro da riqueza de detalhes que são inseridos dentro da ficção desse mundo com mentes viajando além de seus corpos físicos. Coisas inesperadas acontecem, e fisgam o leitor para seguir até o próximo capítulo e descobrir mais.

E também há um excelente uso do elemento dos corpos C3 nas cenas de ação e perseguição que existem em alguns dos melhores momentos da história. Há uma ótima brincadeira em como de fato os C3 não resistem a certas empreitadas, tal como a premissa de que eles são apenas um pouco mais resistentes que os corpos humanos. Há vantagens em usá-los, mas não o suficiente para tornar o protagonista um personagem imbatível.

Sem mencionar o bom humor que Scalzi consegue empregar em suas obras. Os diálogos são espirituosos. Um dos aspectos que mais me agradam em suas obras. Isso tornam seus personagens mais reais pra mim.

Finalizando

Tendo terminado As Brigadas Fantasma no início do ano, e achado-o incrível, fiquei meio que ansioso quando soube que a Aleph estava às vésperas de lançar um outro livro do Scalzi no Brasil. E aí veio vem a expectativa. O que nem sempre é algo bom.

Felizmente Encarcerado me surpreendeu, não pelo conto criminal apresentado, mas pelo cenário desse futuro aqui criado. É justamente esse o elemento que o torna um livro único e genuinamente divertido. Ainda que a trama central não seja contar como o mundo chegou a esse ponto ou todos os revés dessa sociedade.

Inclusive um dos pontos históricos desse futuro, a questão do final dos subsídios do governo para a sociedade haden, sequer é totalmente resolvida aqui. E não precisa. Porém é inevitável aquele gostinho de “tudo muda daqui em diante, mas isso é uma história para um outro dia, uma outra ocasião“.

E é muito bom saber que este mês também marca o lançamento de Head On lá nos Estados Unidos, a sequência de Encarcerados. Os agentes Shane e Vann estão de volta para um novo caso! Pois é, mal me despeço deste livro e já quero saber mais sobre o próximo.

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Futuro plausível, uma doença assutadora
Um bom sci-fi policial
Escrita de Scalzi continua sensacional
Ótimos e carismáticos personagens
Leitura agradável, bom ritmo narrativo
Impecável tratamento gráfico da Aleph (capa incrível)

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