Piquenique na Estrada | Refugo alienígena! (Leitura Concluída)
Não sendo meu primeiro livro de ficção científica russo, Piquenique na Estrada, não me causou o mesmo impacto e estranhamento que o utópico Nós, de Ievguêni Zamiátin, me causou ao ter contato com a obra.
Claro que ajuda o fato de que ambos os livros tenham textos editoriais que contextualizem um pouco algumas características da ficção científica russa, que é muito mais sobre mundos opressores e cutucadas sociais em torno da própria cultura russa do século passado. Assim o leitor atual (e estrangeiro) chega sabendo em quê está metendo os pés.
Não são apenas ficções sobre tecnologias incríveis que criam cenários fantásticos onde o leitor viaja desejando estar lá. Como muitas vezes é a ficção científica norte-americana, que enaltece o herói e o protagonismo. Aquela figura que está ali para consertar o mundo. O que eu vi, tanto em Nós, quanto em Piquenique na Estrada, foram ficções onde o mundo está ruim e não estamos aqui para consertar, mas fazer o leitor pensar sobre o cenário em si e como nós, como humanidade, conseguimos atingir tal ponto.
Por mais que haja esperança, especialmente em Piquenique na Estrada, a trama é mais como um tapa na cara do leitor, para dizer que a realidade não é um bolinho açucarado no final de um dia exaustivo de trabalho. É estranho, mas eficaz na reflexão proposta.
Não venha pelo final (sem spoilers)
Antes de ir adiante, já alerto para não se preocupar com spoilers. Não vou contar nada que vá estragar a sua viagem pela leitura do livro. Haverá pontos sobre a trama que quero discutir e comentar, mas não vou entregar nada importante.
Só que quero começar este papo justamente pelo final do livro, sem propriamente contá-lo. De cara digo que ao terminá-lo não entendi plenamente o fim de Piquenique na Estrada. O que de imediato me surpreendeu – e me amedrontou um pouco.
Depois corri para a internet, um espasmo quase natural nos tempos atuais, e vi muito pouco debate a respeito de como Piquenique na Estrada termina em suas resenhas nacionais do livro, que estavam um pouco mais preocupados e contextualizar certos fatos, como ser o livro que deu origem ao filme soviético Stalker de 1979 (que nunca assisti e nem sei se conseguiria assisti-lo agora). Mas o que mais me despertou atenção foram alguns dos comentários lá do Skoop a respeito da obra, com leitores mais preocupados em discutir sobre o livro em si. Valeu a pena correr lá após terminar a leitura.
Indo adiante, vou simplificar um pouco o ponto em que quero discutir: eu não gostei do final do livro. Talvez por não entende-lo, ainda que tenha lido opiniões sobre a reflexão que esse final propõe e os significados subjetivos do mesmo. O prefácio pela escritora Ursula K. Le Guin também faz elogios a como a obra termina, sobre a ideologia do desejo que o protagonista exerce no final. Há esse simbolismo da jornada até o artefato final da obra, tanto quanto certo sarcasmo e ironia pela última expressão desse capítulo final. Eu aceito tudo isso, mas não quer dizer que tenho que gostar.
E não que a forma como todo o capítulo final funciona seja ruim. Não acho que seja. Eu realmente apenas não curti esse finalzinho. Estava imerso naquela mundo, naqueles personagens, e a obra termina mesmo de uma forma abrupta, quase sem concluir, mas concluindo à sua maneira esse conto. Não gostei do “vai e vem” entre o terceiro e quarto capítulo do livro, por assim dizer.
Pra mim, em minha opinião nada profissional e nem mesmo de especialista, Piquenique na Estrada tem uma jornada muito mais interessante, e divertida de se ler, do que o encerramento final proposto pelos autores da obra, os irmãos Arkádi & Boris Strugátski. E segure esse pensamento que eu volto para mais disso ao final deste texto.
Abstracionismo
No outro lado dessa conversa, o que mais me fisgou na leitura do livro foi a forma abstrata como muitas das cenas de tensão e ação são expressas no texto da obra. O leitor lê sem entender exatamente o que os autores estão dizendo. Dá ar a imaginação, sem que haja a perda da narrativa, do ponto de partida e chegada do roteiro.
O livro cria esse evento alienígena em quê eles estiveram em nosso planeta, ficaram por um breve período e partiram, deixando para por aqui restos de sua visitação. Tecnologia que não entendemos em zonas que foram modificadas em níveis que sequer fazem sentido a nossa ciência e raciocínio lógico.
Modificações que beiram o absurdo, como pontos gravitacionais que poderiam amassar um ser humano instantaneamente, locais onde labaredas queimam em intervalos de tempo qualquer coisa que estiver em seu caminho, pontos onde apenas o toque poderia causar a morte de uma pessoa, ou objetos que derreteriam o osso dentro do corpo de um indivíduo, sem danificar sua pele.
E isso são meros exemplos daquilo que o autor me permitiu imaginar. Porque tudo o que acontece dentro destas zonas são explicadas no livro de forma abstrata, usando nomes comuns para artefatos e coisas que não sabemos seus nomes reais. Ocos, carecas de mosquitos, pilhas-estacas e esfera dourada. O leitor só pode imaginar alguns dos jargões existentes dentro desse universo de acordo com o que os personagens tentam explicar a outros dentro do livro, sendo que estes também não entendem muito sobre tais cenários surreais ou tecnologias que não fazem qualquer sentido. É algo tão inacreditável que sequer conseguimos nomeá-los de forma mais apropriada.
O próprio fracasso da ciência chega a ser um ponto de reflexão da obra. Já que há todo um instituto de tecnologia próximo a uma das zonas que não sabe se está exatamente aprendendo algo ao estudar certos artefatos. Saber para o quê podemos usar tais artefatos, mas não como foram feitos é realmente um feito a se comemorar?
Piquenique na Estrada tem então um excesso desse recurso da linguagem sem sentido, mas que há sentido. Onde o surreal e o absurdo estão inseridos de uma forma tão natural, que o leitor sente-se provocado a não entender e a se ver obrigado a imaginar o que diabos está ocorrendo em torno de certos eventos descritos ali.
Não é o tipo de recurso que torna a leitura do livro incompreensível. O leitor entende que personagem X está indo para o lugar Y, em busca do objeto Z e que aquilo irá resulta no próximo evento da história. Mas é essa jornada, tão estranha, é o que provou pra mim ser um dos pontos altos na minha jornada de leitor por Piquenique na Estrada.
Quatro momentos
O livro se divide basicamente em quatro atos. Todos, ou quase todos, em volta da vida de um Stalker, assim como a trama chama aqueles que desbravam as zonas alienígenas, em busca dos tais artefatos alienígenas, e conseguem voltar vivos de lá. Redrick Schuhart é esse cara.
O leitor tem acesso a quatro passagens peculiares da vida de Red, desde a juventude até momentos bem mais adiantes de sua longa e emocionante vida. Quatro momentos que não são exatamente quatro aventuras do personagem, estando mais para quatro divisões de sua vida pessoal. Por exemplo, o começo onde ele está solteiro, enquanto em outro conto o leitor o encontra casado, mostrando a importância de sua esposa e filha para ele. Há um em quê você o encontrará mais velho, porém este em si (o melhor capítulo do livro) não darei mais detalhes.
Nisso o mundo ao redor de Red também muda de conto para conto. O local da obra é sempre o mesmo nos quatro contos, mas muda de acordo com a passagem do tempo. Personagens e situações transitam entre estas histórias e faz com o que leitor tenha mais curiosidade para entender alguns deles.
As reflexões de algumas situações também puxam entre um conto e outro. Há coisas que o leitor vai ter conhecimento em um conto, mas só verá os autores explorando tal fato mais adiante. E todo o cenário das zonas também causam tipos diferentes em cada ato, pois envolve personagens diferentes e a opinião deles do significado de como o mundo mudou por conta dessa visitação alienígena e o que afinal nós representávamos no plano deles.
A impressão que tive é que a obra tem dois tipos de finais. No terceiro conto há uma espécie de conclusão, de pontuar algumas coisas que podem dar como satisfatório para alguns leitores. Eu particularmente gosto desse terceiro conto. Se o livro terminasse ali, me daria por satisfeito. Mas é também uma saída conformista. Eu entendo porque, então, os autores fizeram o quarto ato do livro, para concluir algo que eu realmente não estava a fim de saber. É nesse ponto que o livro puxa o leitor para pensar mais um pouco fora de sua zona de conforto.
Finalizando
Piquenique na Estrada não é um livro para se simpatizar com um personagem em si, ou sua dura vida. Redrick Schuhart não é um destes personagens que você vai torcer para que tudo dê certo com ele. Ele não é o bonzinho da história. Porém tampouco é um vilão. A obra sequer tem um vilão. É uma trama que se passa em um mundo cinza, que retrata claramente que muitas vezes queremos significados a coisas que não temos como dar contexto.
É um livro que não adianta ficar aqui tentando explicá-lo. Ele é estranho de uma forma proposital. Há uma proposta muito boa em relação a como somos pequenos perto de um universo muito maior, e isso é um dos pontos que o livro levanta em seus terceiro ato, sem claramente dizer que esta a resposta a qual o leitor estava procurando desde o começo. É apenas algo jogado em muito a tantos outros momentos e reflexões.
E é justamente de bons momentos que fazem a obra ser tão impressionante. Como um todo o livro não me agradou. Não tanto quanto outros que ando indicando aqui no site, mas é em pequenos momentos, longas passagens de alguns dos pontos da jornada de Red que o livro me pegou e não me faz largar a obra enquanto não a terminasse.
É um daqueles livros que o leitor sente vontade de ir adiante. Para ver até onde mais seus autores conseguem distorcer a realidade. Até onde o absurdo proposto pode subverter o que é normal. Até onde dá para se sentir provocado por suas reflexões.
Dá para entender os motivos pelo qual é um clássico da literatura da ficção científica russa. É uma obra atual, sem sinais de envelhecimento. Por mais que tenha sido lançamento em 1972, todo mutilado e censurado, história que um dos autores conta no posfácio da obra, sendo que aqui no Brasil a Editora Aleph está publicando a obra totalmente na íntegra, sem os cortes e mudanças da forma como o livro foi originalmente publicado na Rússia. Algo que o próprio autor diz odiar que tenha sido feito. Temos aqui a versão deles da obra.
Piquenique na Estrada é uma destas obras que não cai no gosto de qualquer leitor. Porém é sim uma incrível obra de ficção científica. Cria preceitos de um mundo muito interessante, que adoraria ver melhor explorado em outras mídias, ainda mais com os efeitos especiais de hoje em dia. São aspectos e detalhes, pensando nesse ambiente dentro das tais Zonas, que é até uma pena que o livro não explore com tanto afinco. Aos curiosos por bons livros, que curtem sair da zona de conforto, é uma boa indicação.
É um daqueles livros que se eu tivesse lido nos tempos de escola, naqueles cenários onde algum professor me obrigasse a lê-lo, seria muito provável que ficasse revoltado com tal obrigação. Tento-o lido por vontade própria, para contar mais sobre o livro aqui no site, isso não me incomodou. Foi divertido, ainda que não tenha gostado muito, não por sua jornada ou construção de mundo, mas de como o livro em si termina. Valeu a leitura, mas com certas ressalvas.
Se gostou e quer adquirir Piquenique na Estrada basta dar um pulo neste link na Amazon BR. Não é um livro caro, e o acabamento em capa dura feito nesta edição da Aleph está excelente. Edição muito bonita, com a obra sem cortes e censura, com prefácio escrito pela escritora Ursula K. Le Guin e posfácio do Boris Strugátski contando como foi difícil que a obra fosse publicada na Rússia originalmente. Um excelente edição para colecionador.