Lembro de quando escrevi minhas considerações finais em torno de Coração de Aço, primeiro livro que da Trilogia Executores e que antecede Tormenta de Fogo. Lá comentei sobre como o livro cria um universo fantástico e super interessante, mas que decorrer de seu desfecho acaba tomando certas liberdades, clichês e conveniências narrativas que tornavam a obra mais jovem do que almejava que fosse. Bem, Tormenta de Fogo conserta muito disso.
Antes de entrar mais à fundo no assunto, é legal relembrar que esta série é escrita por Brandon Sanderson, um dos mais populares autores de fantasia da atualidade, responsável por obras famosas como Mistborn, Elantris e The Emperor’s Souls. Trata-se de um universo que tem uma excelente premissa em torno de pessoas com super poderes.
Neste mundo houve um estranho e inexplicável evento, chamado Calamidade, que deu poderes extraordinários a pessoas comuns. Um mundo de super heróis alguns podem pensar. Só que não. Todos que ganharam poderes se tornaram vilões, ditadores, assassinos. A humanidade caiu em virtude disso. As pessoas se tornaram reféns destes super humanos. E um herói verdadeiro nunca… surgiu.
Coração de Aço, o primeiro livro, explora um pouco desse mundo, ao apresentar o jovem David Charleston, a única pessoa que viu o super ser (que dá nome ao livro) sangrar. Estes super seres, apelidado de Épicos na obra, possuem fraquezas e David viu isso em Coração de Aço, apenas não sabe exatamente como ela foi ativada. Enfim, para saber o destino de Coração de Aço e a jornada de vingança de David, leia o primeiro livro. Vale a pena.
Agora é hora de falar sobre a sequência. Vou tentar me desviar de todos os spoilers possíveis. Não entregarei nada que seja realmente importante ou bacana de descobrir ao ler o livro. Pode seguir sem medo.
De Chicago para Nova York
Tormenta de Fogo começa de um ponto aonde o primeiro livro deixou os personagens, porém logo se acerta em um caminho próprio, deixando de lado a cidade natal de David, Chicago, para levá-lo a uma missão do grupo dos Executores – pessoas normais (exceto você sabe quem se leu o primeiro livro) que caçam Épicos – em uma nova localidade, Nova York. Ou Babilônia Restaurada, como aqui a cidade é rebatizada pela Épica que tomou conta de tudo por lá.
Essa mudança de ambiente é importante aqui no livro porque tira o autor de uma zona de conforto. Personagens do primeiro livro ficam para trás enquanto outros novos surgem e precisam ser trabalhados do zero, e conseguem ser tão legais quanto a turma do livro um. E nesse ponto o autor é muito bem sucedido e ousado, especialmente quando chega perto do final e o livro liga o botão da reviravolta.
Aqui Sanderson assume a conveniência dos elementos que não me agradaram no livro anterior e os tornam assertivos. David entende que os Épicos não são exatamente o que ele sempre pensou que fossem. Ele entende que nesta guerra não se pode vencer todos sozinhos, e acredita, de coração, que agora tem outro jeito de salvá-los. E sim, ele está pensando em Megan, cuja a ponta em torno de sua parceira fica em aberto no final do primeiro livro. Aqui o leitor vai descobrir mais sobre Megan e Sanderson torna a personagem bem interessante ao se aprofundar na complexidade de quem ela é.
Os Épicos de Tormenta de Fogo também estão melhores e mais complexos do que os encontrados em Coração de Aço. Eu me lembro como no primeiro livro acuso um destes grandes super seres de ser extremamente bocó, falho e inconsistente. Nesta sequência o autor parece ter tomado muito mais cuidado ao construir os super vilões, que são bem mais interessantes e diferentes. Eles possuem ambições distintas, personalidades intrigantes, poderes insanamente assustadores e o leitor nunca consegue saber o que eles realmente querem até de fato tudo ser revelado. Obliteração, um Épico que me deixou aflito em diversas passagens do livro.
A atmosfera de Babilônia Restaurada é outro ponto de elogios na sequência. É um ecossistema bem mais interessante do que a Chicago de Coração de Aço, que consistia em uma cidade fria, de pessoas escondidas e nunca havia nada fora do óbvio por lá. A Nova York de Sanderson vai contra toda a localidade do primeiro livro, o que mexe com a cabeça de David, combinando perfeitamente com a proposta da trama de envolver outra solução para estes confrontos criados pelos Executores.
Trata-se de uma cidade alagada, pois o poder da Épica que toma este lugar, Realeza, tem justamente a ver com o elemento água. Enquanto toda a cidade é envolta de uma estranha floresta, que tomou conta dos prédios e gera frutas. Ninguém entende como isso acontece, mas atribuem ao evento, e talvez Deus ou algo mais, chamado Luz de Aurora. Outro ponto que é muito bem explorado pela trama.
Batalhas e o ponto de virada
Preciso fazer elogios às cenas de ação e combate no livro. Não dá para dizer exatamente se as achei melhores do que a do primeiro livro, pois esse foi um elemento que achei sensacional em Coração de Aço. Sanderson sabe trabalhar com estes momentos de loucura, onde tudo está dando errado, David está encurralada, mas ainda assim há uma saída. Em Tormenta de Fogo houve momentos tensos, onde a derrota ocorre e a sorte (não a conveniência, que fique bem claro) diz estar ao lado do protagonista da história.
Acho que os confrontos aqui são bem menos clichês do que o confronto final do primeiro livro, o único momento em que, por causa de certos elementos que não quero debater para não entregar spoilers, não me agradaram totalmente. Claro que estando em uma cidade repleta de água podemos esperar que esse seja um fator preocupante e alarmante já que a Épica pode manipulá-la a vontade. E ainda assim o autor constrói uma ótima cena de perseguição pelas vias inundadas da cidade que é de tirar o fôlego.
Gosto também de como é bem construido a ideia do esconderijo e dos aparatos aqui utilizados. No primeiro livro há uma luva de escavar qualquer superfície, os tensores, que me incomodou bastante. Enquanto que aqui o aparato Executor é um tipo de jato d’água, como aquele que o Mario (o encanador da Nintendo) usa em Super Mario Sunshine. É um treco que existe aliás, há vídeos no You Tube disso. Aqui Sanderson apenas enfeita um pouco seu funcionamento.
É legal como todos estes elementos tiram David de sua zona de conforto e como tudo ali o faz pensar sobre estar errado sobre tudo aquilo que ele acreditava sobre as pessoas, Épicos e até mesmo os Executores. Consertar o mundo vai mundo além de assassinar estes super seres. E ter fé e acreditar que heróis podem surgir, que é algo que um dos personagens do primeiro livro lhe dizia sempre para acreditar, passa a fazer bem mais sentido.
Sanderson reconstrói o universo da série na sequência. Dá detalhes e revela mais sobre o evento Calamidade a qual no primeiro livro ele apenas deixa implícito uma coisa ou outra. Tormenta de Fogo é meio caminho andado para uma conclusão definitiva do terceiro livro. E o leitor consegue imaginar o que vem adiante e fica ansioso por isso. E por isso essa é uma construção que torna a obra mais elaborada e bem menos clichê e previsível que o primeiro livro.
Considerações finais (sem spoilers)
Tormenta de Fogo é uma sequência que supera o livro anterior. Isso é fato. A obra continua sendo bem jovem, mas dá sinais claros de amadurecimento. David ainda é um jovem adulto, sem experiências no amor e relacionamentos. Algo que aqui o livro finalmente começa a dar o amadurecimento devido para o personagem, e faz sem parecer boboca ou meloso.
O personagem está mais leve neste livro, pois sua vingança já foi realizada. Agora é hora de explorar um mundo novo, de pensar qual é o próximo passo após seu objetivo de vida ter sido realizado. E isso é diferente, já que muitas obras guardariam isso para o final de um arco ou saga, a resolução de vida de seu protagonista. Mas não é esse o caminho que David está trilhando.
Isso tudo não isenta o livro de esbarrar em momentos onde fica claro demais ao leitor o que virá a seguir. Existe aqui novamente a presença do Prof. (é assim mesmo que se escreve no livro, de forma abreviada) e em como você consegue ver de longe o que diabos o autor quer para esse personagem. Eu vi isso vindo lá da metade do livro, mas ainda assim não há do que reclamar, pois quando acontece o que tem de acontecer, você fica maluco querendo saber o que vem a seguir. Acaba sendo um evento de mudanças de paradigmas para a obra.
É um livro que vale ser recomendado. Talvez os mais adultos, que curtam obras mais sérias, ou mais sombrias, vejam esta série Executores juvenil demais, isso é verdade. Mas acho que dá para se desvencilhar disso e pensar que há camadas aqui que refletem muito sobre os personagens e eventos. É um livro que você se empolga com as cenas de ação e com os personagens em si. E que cresce aqui, com direito a mais mortes, desastres e momentos tensos onde você não vê claramente para aonde a narrativa dos vilões que te levar. É muito bem construida, exceto por um detalhe ou outro.
Claro que eu gostava da ideia inicial da obra, de que humanos com poderes se corromperiam por si só, apenas porque são mais e podem mais. A maldade estaria no coração das pessoas. Bem, isso ainda poder ser verdade, mais o autor diminuiu bastante esse conceito ao final do primeiro livro, quando fica claro que as coisas não são tão literais assim. Em Tormenta de Fogo esse ponto não volta mais a ser o foco da discussão, ainda que fica claro que David descobriu mais um elemento a ser colocado nesse quebra cabeça. E haverá um momento chocante onde uma proposta é feita e o desfecho é impossível de adivinhar.
Tormenta de Fogo é, então, um ótimo livro. Consegue superar o primeiro livro da série, escala alguns conceitos da obra, enquanto muda tudo para evitar os clichês, além de trabalhar muito melhor com os vilões e seus poderes. Tem bastante ação, tem momentos de tensão e suspense, tem humor, tem loucura. Nos momentos finais o tom do livro muda e fica mais pesado, tornando-o mais eletrizante. E ao fim te deixará louco para ler sua sequência, que no ponto de publicação destas impressões a Editora Aleph já o lançou não faz tanto tempo assim. Agora preciso correr e ler Calamidade!
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