Análise | Sea of Solitude
Disponível para PlayStation 4, Xbox One e PC
Sea of Solitude é uma destas joias raras que permeiam o mundo dos jogos eletrônicos de tempos em tempos. É aquele jogo que foge da esfera do senso comum, querendo das significa e sentido a experiência e aos sentimentos que podem ser trabalhados em meio a esse tipo de entretenimento. O resultado é emotivo, significativo e possui uma beleza singular.
O título é uma produção independente, do estúdio alemão Jo-Mei Games, liderado pela desenvolvedora Cornelia Geppert, com base em algumas de suas experiências pessoais e outras histórias reais a respeito de alguns temas pesados da era moderna. Sentimentos como solidão, depressão, medo entre outras sensações que muitas vezes dominam nosso ser e nos deixam em um estado mental nem um pouco saudável. A Eletronic Arts surge aqui, por meio de seu selo EA Originals, como publisher do jogo.
Mar de emoções
Sea of Solitude trabalha temas sérios dentro de um mundo de fantasia. O jogador vive esta aventura sob a perspectiva de Kay, uma jovem perdida em um solitário mar. Todos os outros seres humanos sumiram desse mundo. Cidade estão submersas e não existe nada ao redor, exceto escuridão.
Enormes monstros vivem nesse mar, rodeando Kay. A própria jovem está para se tornar um destes monstros, pois sua aparência já se espelha nestas terríveis criaturas. Kay está sozinha nesse mundo, triste, com medo, sem esperanças.
Porém tudo muda quando Kay encontra um feixe de luz e navega em sua direção. Lá ela encontra uma jovem, ainda humana, que esbanja felicidade em lhe ver e concede ao seu bote um pequeno raio de luz. Parte da maré abaixa, e o topo dos prédios do que parece uma bela cidade surgem. Kay agora pode visitar estes locais secos.
Algo está diferente. Kay não deseja mais esse mundo de escuridão. A jovem que ela encontrou parece ter respostas para que Kay saia desse mundo. Mas logo ela some, quando monstros invadem estes mares e relembrar Kay o quanto ela pertence a esse lugar com eles. O quanto ela não é digna de viver na luz.
Percebe como as metáforas falam por si só no próprio plot inicial do jogo? Kay está na escuridão – os sentimentos que isso representa -, e ao encontrar a luz (sentimentos positivos), ela logo se questiona se ali é seu lugar. Monstros surgem e temos a batalha de Kay para vencê-los. Sair de seu status quo e ir para aonde a jovem alegre está.
Sea of Solitude não esconde suas metáforas, figuras de linguagem e analogias. Pontos aqui e ali podem ser interpretativos, mas no geral o jogo está guiando o jogador por situações concretas e reais, dentro de uma fantasia que é exatamente para fazer sentido. Não é um daqueles jogos que só no final as coisas farão sentido. Elas fazem sentido desde o começo. É um detalhe que me agradou muito, pois me permitiu refletir e pensar enquanto a própria narrativa se desenrolava.
Peso de sua temática
Mesmo sendo um jogo que tem como proposta a discussão de temas pesados, como depressão, solidão, tristeza, bullying, estresse profissional, brigas familiares e de relacionamento, Sea of Solitude não o faz de forma dramática e sombria. É diferente de jogos como Inside, onde a tensão, a fórmula macabra e sombria lhe deixa mal dentro desse mundo terrível. Sea of Solitude trabalha estes temas de forma diferente. Kay está lutando contra eles, e portanto deve vencê-los.
Não é um título feito para lhe deixar mal. Te fazer sentir-se mal. Pelo contrário, o jogo é recheado de mensagens positivas e, mesmo quando é triste – e eu me senti muito mal na parte da escola – isso vai se revertendo conforme Kay vai entendendo o que está acontecendo e se predispondo a combate tudo que é ruim nessa situação. A energia, ao fim de cada ato, é tremendamente positivo. Emocionalmente você se sente bem.
Entendo que falar sobre depressão e tantos outros polos negativos que o jogo apresenta, sem soar leviano, seja realmente difícil. Todo mundo passa por momentos complicados na vida, onde sentimentos ruins tomam conta da gente. Trabalhar isso em um videogame, fazendo o jogador ter uma conexão emocional, é delicado, ao mesmo tempo que impressionante quando bem sucedido. O que é o caso aqui.
Sea of Solitude trabalha com esse tema da saúde mental, do estado de espírito de sua protagonista, de uma forma tão interessante quanto Hellblade: Senua’s Sacrifice também o faz. Porém ambos são bem diferentes. Senua é sobre viver uma experiência em um estado psicológico específico, que alteram nossa percepção de realidade e fala sobre a loucura da mente, enquanto Sea of Solitude fala sobre sentimentos que nos botam pra baixo, que nos fazem sentir mal com nosso próprio ser.
Gostei muito do contraste do mundo apresentado em Sea of Solitude, entre o peso do mundo negativo e a paz de espírito que o mundo da luz passa ao jogador. A direção de arte do jogo, ainda que com gráficos bem simples, é incrível. É um estilo que funciona muito bem a proposta de seu tema.
Jornada em um bote
Passando para o elemento da jogabilidade e das mecânicas propostas pelo título, talvez seja aqui o segmento a qual as coisas deixem um pouco a desejar. Não por que são ruins os controles ou que o título seja chato de se jogar, mas porque ele não apresenta novidades ou senso de progressão no ato de jogar.
Funciona assim: você controla seu barco em uma área relativamente aberta, porém sem muitas novidades para se explorar, enquanto vive outros segmentos a pé, dentro de prédios, no todo dos mesmos ou em áreas específicas a qual o andar é a única opção. Boa parte destas áreas não podem ser acessadas novamente após o segmento das mesmas ter se encerrado.
Parte do desafio do jogo é acompanhar a história. Você ganha uma única habilidade no início do jogo que vai lhe dar o caminho para toda a jornada: a habilidade de atirar um feixe de luz (flare). Quase como fogos de artifícios. Esse flare vai lhe dizer aonde ir com o barco, quais edifícios subir e afins.
E aí o jogo lhe dá desafios para chegar ao destino desejado. Muitas vezes é nadar em águas onde um monstro está rondando. Aí você espera ele se afastar, pula na água e nada o mais rápido que puder até a próxima superfície (nestes segmentos seu barco não está próxima de você). Em outras há espíritos ruins lhe perseguindo e deve atraí-los para a luz, disparando um flare no momento exato. Fora que há segmentos inteiros que o objetivo é apenas andar, ouvir a história e executar pequenos objetivos, como recolher luz em uma área fechada ou criar um feixe de luz que acerta um dos monstros bloqueando o caminho. Ou seja, é uma jogabilidade simples, basicamente sem qualquer desafio.
Não que eu, particularmente, veja isso como algo ruim. Não acho que seja. Porém entendo aqueles que talvez se frustrem com tal simplicidade. Mesmo que o jogo bole maneiras inteligentes para impedir a sensação de repetição (como um dos atos em que se sobe em um prédio em chamas), esse elemento ainda é bem evidente. E só não é mais ainda porque Sea of Solitude é um jogo curto. Deste que se fecha em um sábado a tarde.
O fato é que não se trata de um jogo de um mundo aberto imenso. Áreas são reaproveitadas, a exploração é limitada, e as mecânicas tem variações mínimas. Kay não vai ganhando novas habilidade malucas ou novos golpes, como um videogame mais tradicional certamente faria. Ela aprende apenas a usar o flare em situações diferentes, mas quase sempre óbvias. Até porque o importante aqui é a narrativa, e não a repetição de segmentos e atos porque o jogador morreu tentando passado de algum ponto específico.
E para não dizer que a exploração é vazia, o jogo apresenta dois tipos de colecionáveis: garrafas com mensagens dentro, que apresentam pequenas inserções do mundo do jogo – algumas boas mensagens sobre os temas discutidos, outras nem tanto -, e também pequenas gaivotas, que Kay as enxota para o céu – sem nenhum propósito grandioso, apenas porque é legal o senso de visão que se dá para o mundo ao redor da área quando as aves saem voando.
Enfrentando seus monstros
Dentre os pontos altos de Sea of Solitude estão os confrontos e momentos em que o jogador deve enfrentar os grandes monstros do jogo. Cada um tem uma representação dentro da narrativa, e Kay precisa enfrentá-los para vencer as barreiras que os mesmos impõem.
Em termos narrativos eles são muito interessante, porém mecanicamente também funcionam muito bem em diversas situações. Gosto como não são batalhas diretamente com os mesmos, e sim uma situação a qual o jogador deve lidar com algumas situações dentro do jogo em si. Quebra a concha de um deles, em uma cenário dividido em etapas, em outros você tem um confronto entre dois deles, e é preciso limpar a área com vultos de representações de sentimentos humanos, o que também ocorre em outro momento dentro de uma quadra de basquete. São momentos tensos, não pelo desafio em si, mas pelo o quê tais momentos representam.
Também é interessante quando próximo ao ato final do jogo, Kay precisa lidar com uma relação amorosa e o mundo é representado por gelo e um grande lobo branco. Gosto de como todo esse ato acontece, assim como o desfecho final do mesmo. Kay tem uma resolução ali, mas o mesmo não se pode dizer em relação ao lobo em si. É diferente dos dois atos anteriores.
Em resultado a tudo isso é uma lição sobre ouvir mais àqueles próximo a você, entender que relacionamentos nem sempre funcionam, que família é sempre família – independe dos problemas, que desapegar de certos sentimentos muitas vezes é essencial para que novos surjam. Claro que as respostas para alguns dos problemas apresentados ao longo do jogo nem sempre são os mais felizes, porém assim é a vida. Aceitar e entender certas atitudes são formas de não se enterrar em sentimentos ruins.
Considerações finais
Sea of Solitude é um jogo bem simples mecanicamente, mas que tem uma boa comunicação narrativa e um uso muito eficiente de metáforas para conversar com os jogadores. A experiência de viver a jornada de Kay é satisfatória à proposta apresentada. Existe um efetivo vínculo emocional que pode facilmente pegar o jogador.
A fórmula do jogo chega a impressionar em seu primeiro ato, mas talvez possa ser um pouco cansativo eventualmente. Isso não estraga as coisas, mas certamente tiro o jogador do potencial que a experiência poderia vir a se tornar. Porém ainda assim há grandes momentos de jogabilidade e narrativa em torno dos dois últimos atos. O segmento de plataforma ao subir um prédio é excelente, enquanto toda a ambientação do mar congelado é fantástico.
Os segmentos em que o nível do mar desce até revelar toda uma área urbana para se investigar são momentos interessantes, porém não desafiam o jogador como talvez pudessem fazer. São mais momentos para andar e ouvir a história do que se preocupar com algum perigo em si. Entretanto o visual do mar se abrindo e do jogador estar em uma buraco em meio a gigantescas paredes de algo é algo realmente deslumbrante, de arrepiar.
Sea of Solitude é um jogo de contemplação em boa parte das 4 ou 5 horas que se leva para ser terminado. Não é um jogo longo, mas não que isso seja um problema. Na verdade acho que ele dura o tempo exato que deveria durar. Parte da experiência ao jogar esta em observar e se admirar com o visual encantador, e assustador, que existem ao longo de toda sua aventura.
Minha única, e principal, crítica fica por conta da falta de localização para nosso querido português. Sea of Solitude chegou ao nosso mercado sem legendas ou dublagem em português. Tudo está em inglês, o que pode vir a ser uma barreira para muitos jogadores que não dominam o idioma. Sendo um jogo em que 90% de seu peso está em sua narrativa, não ter sido localizado para nosso mercado parece uma grande mancada. Mesmo sendo um jogo independente, a parceria com a Eletronic Arts deveria ter auxiliado o estúdio nesse ponto, especialmente porque a EA lança jogos aqui no Brasil com localização.
Para encerrar, Sea of Solitude foi uma grata e satisfatória experiência. Tão boa e poética quanto poderia ter esperado. Não está dentre os jogos mais inovadores da atual rodada de lançamentos, mas certamente está dentre os mais interessantes, delicados e carinhosamente bem desenvolvidos. Vale muito à pena jogá-lo.
Galeria
Extra – 20 minutos iniciais do jogo
Dando uma nota
Encantador e envolvente, trabalha bem com as emoções - 9.5
Visualmente é belíssimo, uma arte que conversa com o tema proposto - 9
Jogabilidade um pouco simples, sem uma evolução significativa - 8
É curtinho, ainda que seja de bom tamanho, porém com baixo valor de replay - 7
Exploração limitada, sem poder voltar a momentos já finalizados - 7.5
Trabalha temas importantes e adultos, como solidão e depressão - 9.5
Sem localização em português, e enteder o idioma é essencial para o jogo - 6
8.1
Ótimo
Sea of Solitude é um jogo para se envolver e emocionar com sua narrativa. Para deixar se levar por sua experiência enquanto trabalha com fortes sentimentos do ser humano. Como jogo, é um pouco mais simples do que se poderia desejar, mas não é o fim do mundo apenas por isso. Ao fim é uma jornada que vale a pena ser vivenciada.